A Câmara dos Deputados está em vias de apreciar o Projeto de Lei 4.894/2019, de autoria do deputado Hugo Motta, que conta com substitutivo de autoria do relator, deputado Luiz Carlos Motta, tratando da eficácia dos acordos extrajudiciais para a solução de conflitos trabalhistas. Sem prejuízo da relevância de medidas legislativas como a proposta, que contribuam com a promoção da paz social e da segurança jurídica, sem deixar de lado a tutela de interesses que mereçam atenção, as proposições original e do substitutivo comportam reflexões no sentido do aperfeiçoamento.
Para tanto, é preciso tomar como ponto de partida a ideia de que a resolução adequada de disputas vem cada vez mais avançando no Brasil. A presente área pode ser tida como um campo específico, de caráter interdisciplinar, e que tem como principal objeto a solução de conflitos. Muitos estudiosos do tema consideram como marco inaugural o emblemático evento ocorrido em 1976 nos EUA, denominado Conferência Pound, no qual inclusive foi apresentado ao mundo a então inovadora proposta do professor Frank Sander, correspondente ao "Fórum Multiportas" [1].
E é exatamente o presente conceito que precisa ser considerado na reflexão sobre o PL 4.894, de 2019.
A ideia do Fórum Multiportas, que conta com relevante presença no atual Código de Processo Civil, consiste na proposta de que se coloque à disposição da sociedade diversas possibilidades de mecanismos para a solução dos conflitos, inclusive considerando a adequação do mecanismo ao conflito. Como dizia o professor Frank Sander, "Fitting the Forum to the Fuss", ou seja, é o mecanismo que se adequa ao conflito, e não o contrário [2]. Por outras palavras e numa perspectiva prática, cabe ao Estado e ao sistema de Justiça disponibilizar à sociedade diversas possibilidades, de modo que seja adotada aquela que mais se ajusta à situação, o que também se alinha com a proposta do professor Kazuo Waranabe, de que o artigo 5º, XXXV, da Constituição deve ser compreendido como o livre acesso a um serviço de Justiça Consensual de qualidade [3].
Além disso, outro conceito que compõe o Fórum Multiportas envolve a ideia de escalonamento ou ordenação dos mecanismos, tendo por critério o nível de participação das partes e envolvimento de terceiros neutros na solução [4]. Isto é, num extremo estaria a negociação direta, na qual as partes encontram a solução sem qualquer envolvimento de um terceiro, enquanto no outro extremo estaria a sentença judicial, na qual não há participação das partes e há total envolvimento do terceiro neutro na solução.
Refletindo sobre essas diretrizes, a Lei 13.467/2017, também denominada reforma trabalhista, criou o mecanismo da Jurisdição Voluntária Trabalhista, prevista no artigo 855-B e seguintes da CLT, estabelecendo a possibilidade de que seja firmado acordo extrajudicial, levado à homologação judicial. Se fosse adotar a lógica do escalonamento dos mecanismos, talvez devesse o legislador ter inicialmente investido na mediação pré-processual, na qual, sem necessidade de processo judicial, o acordo é fechado dentro do Judiciário e também homologado pelo próprio Judiciário. Na época, tal mecanismo não existia, tendo sido admitido inicialmente para conflitos coletivos, por meio da Resolução CSJT 174/2016, e posteriormente para conflitos individuais, por meio da Resolução CSJT 288/2021.
Mas o fato é que a Jurisdição Voluntária Trabalhista foi instituída e passou a ser utilizada. Inclusive é possível considerar que o presente mecanismo ainda vive momento de amadurecimento, principalmente diante de alguns temas que aguardam definição jurisprudencial. Um desses temas consiste na possibilidade do magistrado que analisa o pedido de homologação alterar os termos pactuados, isto é, se o magistrado pode alterar o acordo ou apenas deve se limitar a rejeitar a homologação, quando perceber que há alguma cláusula ou condição que seja inadmissível. Recentemente, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho proferiu decisão entendendo válida a alteração (RR-1001542-04.2018.5.02.0720), ao passo que a 7ª Turma entendeu que só caberia a rejeição da homologação (RR 1001651-86.2019.5.02.0201).
Portanto, é nesse contexto que a Câmara dos Deputados irá se debruçar sobre a análise do PL 4.894 de 2019.
O texto original da proposta estabelecia a possibilidade do acordo extrajudicial, com dispensa da homologação judicial, sendo firmado perante a autoridade cartorária (notário), ou seja, por meio de escritura pública. O substitutivo promove ampliação, no sentido de também permitir o acordo perante as Câmaras Privadas de Mediação e Conciliação.
Não há como negar que as Câmaras Privadas, previstas tanto no atual Código de Processo Civil, quanto na Lei 13.140/2015, consiste em mecanismo voltado à solução autocompositiva de conflitos, que tem se consolidado em termos institucionais e conta com expertise própria para a busca do consenso e pacificação social.
Além disso, não há dúvida de que atualmente existe um pequeno exército de profissionais da busca do consenso, e que se qualificam tecnicamente para isso, que estão em torno das Câmaras Privadas. Logo, no momento atual, talvez as Câmaras Privadas estejam mais vocacionadas e preparadas para a solução de conflitos trabalhistas pela via do consenso e promoção da pacificação social, do que os Cartórios.
E nesse sentido, inclusive adotando a lógica do Fórum Multiportas, talvez seja o caso de que primeiro a presente atividade de pacificação de conflitos trabalhistas seja exercida pelas Câmaras Privadas. E mais, a exemplo do que já faz em alguma medida o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho passe a ter a incumbência de supervisionar e estabelecer diretrizes para o funcionamento dessas Câmaras, quanto à solução dos conflitos trabalhistas.
Mas para além das considerações apontadas e de forma específica, no sentido de contribuir com o debate, faria as seguintes sugestões aos legisladores e, em especial, ao deputado Luiz Carlos Motta:
1 - Sobre o órgão responsável pelo acordo:
- limitar tal possibilidade às Câmaras Privadas de Conciliação e Mediação, excluindo a solução via escritura pública;
- estabelecer a necessidade de que para atuar na solução de conflitos trabalhistas e produzir acordos extrajudiciais, as Câmaras Privadas devem contar com autorização do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, responsável também pela supervisão e fiscalização. Isso contribuiria para a lisura do funcionamento, além de evitar os problemas como os vivenciados com as Comissões de Conciliação Prévia, criadas e fracassadas no final dos anos 90 e início dos anos 2000;
- prever a possibilidade de que entidades sindicais se dediquem à criação de Câmaras Privadas, o que inclusive pode contribuir para ampliar a pacificação social no âmbito das relações de trabalho;
2 - Sobre o questionamento ao acordo extrajudicial:
- diante da dispensa de homologação judicial, adotando uma lógica de trocar controle prévio por controle posterior por parte do Judiciário, prever a possibilidade de ação anulatória do acordo, de competência funcional originária da Vara do Trabalho, observada a regra de competência territorial do artigo 651 da CLT;
- tal mecanismo de impugnação do acordo poderia ser utilizado nas situações de vício de vontade ou de ilegalidade no conteúdo do acordo, inclusive quanto à matéria tributária;
- o presente mecanismo poderia também contar com norma semelhante ao previsto no artigo 611-A, § 4º, da CLT, o qual estabelece que no caso de anulação de cláusula de Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho a eventual contrapartida também se anula;
- prever que o Ministério Público do Trabalho ou terceiros prejudicados (como a Fazenda Pública quanto à matéria tributária) tenham legitimidade para promover a ação anulatória;
3 - estabelecer que, no caso de falência ou recuperação judicial, o acordo extrajudicial não pode ter condição privilegiada comparativamente com os créditos constituídos judicialmente.
Com esses ajustes, tendem a se ampliar as condições para que o mecanismo proposto contribua com a pacificação social e segurança jurídica, sem deixar de tutelar interesses que exigem tutela diferenciada.
Mas independente do formato final, o importante é que o Poder Legislativo esteja atento ao tema e contribua para soluções que levem à harmonização das relações de trabalho e ao tratamento adequado dos conflitos.
[1] BARBOSA, Ivan Machado. Fórum de Múltiplas Portas: uma proposta de aprimoramento processual. In: AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. v. 2. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2003.
[2] Sander, F.E.A. and Goldberg, S.B. (1994), Fitting the Forum to the Fuss: A User-Friendly Guide to Selecting an ADR Procedure. Negotiation Journal, 10: 49-68. https://doi.org/10.1111/j.1571-9979.1994.tb00005.
[3] WATANABE, Kazuo. Sobre o conteúdo do livro. In: Acesso à ordem jurídica justa: conceito atualizado de acesso à justiça, processos coletivos e outros estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2019, p. 88.
[4] AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento– PNUD.
Dimensão social da Sustentabilidade – “Trabalhos Verdes”1
Alberto Bastos Balazeiro2 Afonso de Paula Pinheiro Rocha3 Ananda Tostes Isoni4
O termo “sustentabilidade” pode ser definido como o equilíbrio entre desenvolvimento, proteção ambiental e melhoria da qualidade de vida das pessoas, de modo que as necessidades presentes sejam atendidas sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades. Em outras palavras, sustentabilidade é a busca da garantia do bem-estar da humanidade e do planeta agora e no futuro.
Embora recorrente, a associação de desenvolvimento à sustentabilidade, consolidada na expressão “desenvolvimento sustentável”, tem sido alvo de críticas em razão de sua ambiguidade e abrangência. Veiculada em sentidos diversos, em muitos casos contraditórios, a expressão foi rechaçada por autores como Alain Supiot e Gómez-Baggethun, que a consideram um oxímoro.
Sobre o tema, Supiot adverte que prosseguimos na ladeira escorregadia de conduzir as sociedades com base em indicadores econômicos, cada vez mais desconectados da realidade vivenciada pelas pessoas. O autor aponta para a conscientização sobre a insustentabilidade desse modelo, calcado no mito de crescimento indefinido.
A premissa é compartilhada por Gómez-Baggethun, para quem os conceitos de desenvolvimento sustentável e de economia verde devem transcender as noções de crescimento do produto interno bruto (PIB) e de desenvolvimento unidirecional para se transformar em noções que orientem de forma válida a transição para uma sociedade ecologicamente viável e socialmente justa. O alerta é pertinente e evidencia que a expressão “desenvolvimento sustentável” assume diferentes significados a depender do modelo de desenvolvimento adotado como paradigma.
A imprecisão terminológica foi reconhecida no relatório Caring for the Earth - a strategy for sustainable living, que a atribuiu ao uso intercambiável dos termos “desenvolvimento sustentável", "crescimento sustentável" e "uso sustentável”, de significados diversos. Segundo o relatório, "crescimento sustentável" é uma contradição em termos: nada físico pode crescer indefinidamente. "uso sustentável" é aplicável apenas a recursos renováveis: significa usá-los em quantidades compatíveis com sua capacidade de renovação. Por sua vez, a expressão "desenvolvimento sustentável" adotada no relatório corresponde à melhoria da qualidade da vida humana dentro da capacidade de suporte dos ecossistemas.
Para além do dissenso em relação ao termo “desenvolvimento sustentável”, qualquer projeto de transformação social comprometido com a preservação da natureza e o desenvolvimento humano deve abranger o direito ao trabalho digno para todas as pessoas, imbuído de conteúdo e sentido, com remuneração justa e proteção social, em ambiente seguro e saudável. É também fundamental a promoção do diálogo social efetivo, que inclua representantes de trabalhadores(as), empregadores(as) e governo na definição e consecução dos passos necessários à transição ecológica.
Ao contrário do que alardeia o discurso avesso à ecologização da economia, a adoção de práticas sustentáveis poderia gerar de 15 a 60 milhões de empregos no mundo nas próximas duas décadas e tirar dezenas de milhões de trabalhadores(as) da pobreza, segundo aponta o relatório Working towards sustainable development, publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). De fato, a sustentabilidade tem implicações significativas para os empregos, pois muitos setores estão mudando para assegurar ganhos de eficiência e preservar o meio ambiente. Isso pode resultar em novos empregos em áreas como energia renovável, eficiência energética, tecnologia verde, entre outras. A implementação de práticas sustentáveis nas empresas também pode representar a melhoria da qualidade de vida de trabalhadores(as).
De uma forma ainda mais específica para a moderna noção das atividades empresariais, desponta como campo de atenção para a teoria da administração e das relações corporativas a adoção de práticas “ESG”. Práticas ESG (ambientais, sociais e de governança), por sua vez, são uma parte importante do que se entende por sustentabilidade empresarial. As práticas ESG consubstanciam-se em medidas adotadas pelas empresas para avaliar e gerenciar os impactos ambientais, sociais e de governança de suas atividades de negócios. Isso inclui questões como emissões de carbono, direitos humanos, diversidade e inclusão, transparência e responsabilidade corporativa. Todos temas que possuem implicações concretas para as relações de trabalho.
Perceba-se que, na concepção moderna de atividades empresariais, a integração de práticas ESG na estratégia de negócios torna-se fundamental para a sustentabilidade, pois permite que as empresas identifiquem e gerenciem seus impactos e contribuam positivamente para a ecologização da economia. Além disso, as práticas ESG também têm despontado como importantes para investidores(as), pois ajudam a avaliar o risco e o potencial de desempenho das empresas com respaldo em informações verídicas, ao contrário do que ocorre na prática de greenwashing.
Com efeito, as práticas ESG parecem ser a ponte de conexão para que os movimentos produtivos econômicos se insiram em uma verdadeira ecologia com dimensões sociais e dentro de um equilíbrio de trocas positivas com a sociedade, em detrimento de uma concepção de maximização de lucros mediante a externalização oportunística de custos sociais não equacionáveis.
Nesse ponto, podemos aprofundar a reflexão sobre uma dessas dimensões da sustentabilidade que nos interessa mais particularmente – a dimensão social dessa sustentabilidade e, mais precisamente, as questões trabalhistas dessa dimensão social.
A dimensão trabalhista da sustentabilidade assim se refere ao impacto das atividades econômicas nas condições de trabalho e no próprio projeto de vida dos(as) trabalhadores(as). Ela abrange questões como compliance trabalhista em face dos direitos reconhecidos no ordenamento jurídico, saúde e segurança no trabalho, prevenção de todas as formas de assédio e discriminação, igualdade de gênero, diversidade e inclusão, entre outras.
Entendemos que pensar a dimensão trabalhista da sustentabilidade envolve reconhecer os(as) trabalhadores(as) como protagonistas da construção de um ambiente regulatório e de políticas públicas que, em última análise, redundam em condições mínimas de organização normativa e social necessárias ao trabalho decente, enquanto categoria preceituada nos compromissos internacionais da nação brasileira.
É preciso relembrar sempre que condições de trabalho desfavoráveis podem afetar negativamente a saúde de trabalhadores(as), bem como sua capacidade de contribuir para o bem-estar comum. Trabalhadores(as) sujeitos(as) a condições inseguras devem ser objeto de preocupação e atenção de toda a sociedade primordialmente em razão do reconhecimento de sua dignidade humana. Além de gerar danos imensuráveis à saúde e à vida, o descaso com medidas de proteção sobrecarrega o sistema de seguridade social, como evidencia levantamento realizado pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho.
É também oportuno recordar a premissa histórica de que a justiça social se consubstancia em pressuposto necessário para a paz e a harmonia nacional e internacional. A garantia de trabalho decente a todas as pessoas, com a preservação de direitos no meio ambiente de trabalho, torna-se crucial para qualquer sociedade que se pretenda sustentável.
Converge a esse entendimento a definição de “segurança e saúde no trabalho” como quinta categoria de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, em decisão tomada na 110ª Conferência Internacional do Trabalho, no ano passado. A partir de então, a Convenção nº 155, sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores, e a Convenção nº 187, sobre o Quadro Promocional para a Segurança e Saúde Ocupacional, passaram a ser consideradas convenções internacionais fundamentais e, portanto, de aplicação obrigatória aos Estados-membros, independentemente de ratificação.
Então surge a pergunta que se torna um ponto central da reflexão deste texto – como se projeta a categoria do trabalho decente dentro do prisma da sustentabilidade e de uma sociedade preocupada com o meio ambiente – ou mesmo um Estado de Direito do Ambiente. Entendemos que um caminho para essa resposta perpassa o conceito de “trabalhos verdes”, compreendidos pela OIT como empregos que protegem os ecossistemas e a biodiversidade; reduzem o consumo de energia, materiais e água através de estratégias de elevada eficiência; descarbonizam a economia; e minimizam ou evitam todas as formas de poluição ou produção de resíduos. Com efeito, uma política pública ambiental que promova a transição para uma Bioeconomia deverá estar vinculada à justiça social sob pena de inviabilizar sua própria estabilidade e continuidade.
Nesse particular, parece contraditório com a importância desses trabalhos verdes no plano teórico a verificação empírica de condições precárias e situação de vulnerabilidade de atividades como, por exemplo, dos catadores de materiais recicláveis. Chama-se aqui atenção para dado da OIT que estima que cerca de 4 milhões de trabalhadores(as) atuem na reciclagem de resíduos no setor formal, e de 15 a 20 milhões, no setor informal.
Invariável concluir que negligenciar a dimensão de inserção social desse contingente humano é, por si só, um impacto ambiental significativo. Todo este contingente populacional pode estar adequadamente se incorporando a um padrão de trabalho decente e sustentável, dentro de uma lógica de economia e trabalhos verdes ou, se negligenciado, passa a ser mais um fator estressor do uso de recursos ambientais. Assim, parecem de todo louváveis e essenciais os recentes anúncios veiculados na mídia jornalística de que o Ministério do Meio Ambiente estaria envidando esforços para a constituição de grupos de trabalho e comitês para delinear políticas públicas voltadas à constituição de uma Bioeconomia.
De fato, pensar o desenvolvimento num paradigma sustentável e ecológico é também pensar os(as) trabalhadores(as) dessa nova realidade a partir de uma inserção efetiva de proteção e estímulo dos “trabalhos verdes” – e um ponto central desse cuidado inicial é exatamente resguardar a essas atividades o mesmo padrão de atenção para a saúde e segurança no trabalho.
Mais uma vez, parece acertado e oportuno reiterar a importância da proteção às condições de trabalho de todos(as) os(as) trabalhadores(as), inclusive daqueles(as) que atuam em empresas que já contribuem para
a ecologização da economia. Nesse sentido dispõe a meta nº 8.8 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável: “Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários”.
Importante ressalvar que a transição para uma economia sustentável também pode afetar negativamente alguns empregos em setores tradicionais, como a indústria de combustíveis fósseis. É importante que sejam implementadas políticas para ajudar a garantir uma transição justa para os trabalhadores(as) afetados(as) - o que se insere, mais uma vez, na essencialidade de se discutir o futuro do trabalho dentro de uma perspectiva ambiental.
A conclusão singela deste artigo é que se torna extremamente necessário que a comunidade jurídica passe a se debruçar sobre as discussões envolvendo a dimensão social da sustentabilidade, bem como amplie e aprofunde a pesquisa sobre os contornos, implicações e medidas necessárias para que os trabalhos verdes – tão necessários ao futuro da humanidade - possam se tornar uma realidade concreta e protegida no Brasil.
2Alberto Bastos Balazeiro é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, coordenador nacional do Programa Trabalho Seguro, ex-procurador-geral do Trabalho, doutorando em Direito (IDP) e mestre em Direito (UCB).
3Afonso de Paula Pinheiro Rocha é procurador do Trabalho, doutor em Direito Unifor, MBA em Direito Empresarial (FGV/Rio), pós-graduado em Controle na Administração Pública (ESMPU) e secretário jurídico adjunto do MPT.
4Ananda Tostes Isoni é Juíza do Trabalho, gestora nacional do Programa Trabalho Seguro e coordenadora-geral do Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízas e Juízes para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana (COPAJU Brasil).
Marcos Ulhoa Dani Juiz do Trabalho do TRT da 10ª Região
INTRODUÇÃO
A lei 11.280/2006 já tinha acrescentado um parágrafo ao artigo 154 do então CPC de 1973, possibilitando aos tribunais disciplinar a prática e a comunicação oficial via meios eletrônicos. Todavia, a amplificação deste formato processual eletrônico, com a regulamentação de vários outros aspectos, veio no mesmo ano de 2006, com a lei 11.419/2006. Desde a sua implementação formal por este Diploma Legal, a informatização dos processos judiciais representou verdadeira revolução no processo civil e no processo do trabalho, modificando e modernizando velhas e desatualizadas práticas processuais. Novas leis e regulamentações surgiram com a instalação do PJe – Processo Judicial Eletrônico, e, seja por critérios cronológicos ou de especialidade na solução de antinomias aparentes, prevalecem sobre regras processuais pretéritas em eventual interpretação em contrário.
DA MODERNIZAÇÃO DO PROCESSO E A VALIDADE DA INTIMAÇÃO, VIA PJE, PARA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO
Na Justiça do Trabalho, sob a batuta incansável do Exmo. Ministro João Oreste Dalazen, então presidente do TST e do CSJT, o Pje foi instalado oficialmente, pela primeira vez, em 05/12/11, na Vara do Trabalho de Navegantes (SC). Este magistrado, advogado à época, se recorda da estupefação e assombro de muitos dos usuários do sistema no início da implementação. Muitos cogitavam em se aposentar para não ter que lidar com aquele modo eletrônico de se fazer as coisas, sem papel, sem carimbos, sem autos e assinaturas físicas. Muitos até o fizeram! Ocorre que o desconhecimento, a rigor, gera receio. Mas, neste caso, os anos de prática demonstraram o acerto daqueles legisladores e magistrados que ousaram quebrar paradigmas e se tornaram pioneiros de uma mudança de hábitos sem precedentes, que beneficiou todos os partícipes do processo. Por ocasião dos 10 anos da implementação do PJe na Justiça do Trabalho, o TST fez uma reportagem especial sobre a data histórica, sendo de se destacar os posicionamentos de duas autoridades diretamente ligadas às primeiras implementações, os Exmos. Magistrados do Trabalho, Drs. Fabiano Pfeilsticker e Luiz Carlos Roveda, que bem retratam a revolução de costumes que a informatização do processo trouxe:
O PJe é um sistema nacional e unificado, que aumenta a celeridade e diminui a burocracia, além de ser facilmente acessível. “Antes, todos os movimentos processuais eram feitos de forma física”, lembra o coordenador nacional do PJe-JT, juiz Fabiano Pfeilsticker. “Era preciso uma pessoa para levar as petições aos fóruns e protocolá-las. Se o juiz precisasse assinar 300 processos em um dia, um servidor precisava separá-los e colocá-los sobre a mesa. Eram armários e mais armários para estocar esses processos e um volume muito grande de documentos”. Atualmente, toda essa burocracia deixa de existir. “Juntar papel, recortar, colar, furar, etiquetar, carimbar, rotular, todas essas atividades deixam de existir”, assinala Fabiano. “Partes, advogados, servidores e magistrados podem consultar as peças a qualquer momento do dia, com uma estrutura simples - apenas um computador e conexão com a internet”. (…) O juiz titular da Vara do Trabalho de Navegantes (SC) na época, Luiz Carlos Roveda, conta que, quando optou por ocupar a vaga, não sabia que seria a primeira vara totalmente eletrônica do Brasil. “Foi um susto, de um lado, e um presente, de outro”, lembra. “Dizíamos que a experiência era como uma embarcação solta para singrar mares desconhecidos e, por coincidência do destino, estava eu como timoneiro, com uma pequena tripulação, cheios de vontade. Conforme enfatizei no dia da inauguração, éramos todos navegantes”. Segundo o magistrado, o PJe descortinou uma nova realidade no trabalho. “Mesas limpas, impressora somente para emitir mandados, advogados e partes que só compareciam à audiência”, relata. “Deixou de existir balcão de atendimento cheio, busca de autos, manuseio, distribuição, verificação, burburinho, espera. A diferença em relação às varas com processo de papel era abissal. Tudo ficou mais limpo, mais ecológico, mais econômico, com tendência a maior eficiência”. (Especial: Pje completa 10 anos de instalação – https://www.tst.jus.br/-/especial-pje-completa-10-anos-de-instala%C3%A7%C3%A3o - acesso em 31/01/23)
A informatização representa celeridade e acesso à informação em tempo real, situação impensável na época de processos físicos. Todavia, ainda hoje, mais de 10 anos após sua primeira instalação oficial na Justiça do Trabalho, a modernização do sistema ainda encontra resistências. Uma situação que retrata este novo estado de coisas é a questão da validade da intimação das partes, via PJe, para audiências de instrução e a eventual aplicação de confissões fictas às partes ausentes àqueles atos processuais. Esta realidade se tornou muito comum, especialmente com um cenário da Pandemia da COVID-19, em que, por várias ocasiões, até pelo fechamento físico e temporário dos fóruns, mediante autorização dos Conselhos Superiores, houve a necessidade de adiamento de audiências de instrução presenciais e remarcação das mesmas, seja para o formato telepresencial, ou mesmo no formato presencial, após o pico da Pandemia nesta última modalidade. Ademais, não raro, o adiamento de audiências é algo relativamente corriqueiro na Justiça do Trabalho, dada as possibilidades descritas, por exemplo, no artigo 362, II, e parágrafos do CPC. Nestas situações, tanto a retirada de pauta da audiência de instrução anteriormente marcada, como a sua remarcação, se dão via intimação pelo sistema do Pje, seja por meio dos advogados das partes cadastrados nos autos, intimação esta que, a rigor, sai publicada no Diário de Justiça Eletrônico, seja pelas procuradorias de entes públicos e assemelhados, via sistema. Não raro, após a marcação, ou remarcação, da audiência de instrução, e consequente intimação eletrônica, ocorrem situações em que uma das partes litigantes não comparece à audiência de instrução. Neste caso, surgiu uma discussão na jurisprudência acerca da possibilidade da aplicação da confissão ficta às partes que não compareceram na audiência marcada via intimação eletrônica, com a cominação de confissão, no caso de ausência injustificada. O conceito de confissão ficta é esclarecido pelo Professor Gustavo Filipe Barbosa Garcia, em sua obra, Curso de Direito Processual do Trabalho, 10ª edição:
A confissão ficta, por seu turno, envolve presunção relativa de veracidade dos fatos alegados pela parte contrária. Ocorre quando a parte, embora tenha sido intimada a comparecer à audiência, para prestar depoimento pessoal, sob pena de confissão, não comparece (Súmula 74 do TST). (BARBOSA GARCIA, 2022, p. 514).
Duas correntes de pensamento surgiram. A primeira corrente entendeu pela impossibilidade de aplicação da confissão ficta na ausência injustificada na audiência de instrução, quando a intimação para a audiência de instrução se dá pela via eletrônica, mesmo que tal cominação esteja prevista no despacho pertinente. A segunda corrente, a qual nos filiamos, entende pela validade da intimação eletrônica das partes, com a cominação de confissão, para efeito de aplicação de eventual confissão ficta na ausência de uma das partes. A primeira corrente, que entende pela inaplicabilidade da confissão ficta em caso de intimação eletrônica para a audiência de instrução, esteia sua posição pela aplicação do art. 385, §1o, do CPC, que diz:
Art. 385. Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício. § 1º Se a parte, pessoalmente intimada para prestar depoimento pessoale advertida da pena de confesso, não comparecer ou, comparecendo, se recusar a depor, o juiz aplicar-lhe-á a pena. (grifei)
Esta corrente entende que a intimação eletrônica não se equipararia à intimação pessoal da parte para prestar depoimento pessoal. Já a segunda corrente, a qual nos coadunamos, por a entender mais razoável e condizente com os atuais estados de informatização do processo e evolução legislativa, considera válida, para eventual aplicação de confissão ficta, em caso de ausência injustificada da parte à audiência de instrução, a intimação eletrônica via Pje que tenha previsto a referida cominação. E a aplicação deste entendimento encontra explicação franciscana na própria lei, sem a necessidade, portanto, de se lançar mão de fontes alternativas do direito. Ocorre que a própria lei 11.419/2006 já prevê, em seu artigo 9o , §1o, in verbis:
Art. 9º No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta Lei. § 1º As citações, intimações, notificações e remessas que viabilizem o acesso à íntegra do processo correspondente serão consideradas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais. (grifei)
Como visto, a própria lei especial, que tem preferência à lei geral, pelo critério da Especialidade na solução de antinomias aparentes, deixou claro que, no processo eletrônico, todas as intimações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico. As intimações por meio eletrônico, que viabilizem acesso à íntegra do processo correspondente são consideradas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais. A lei especial em comento foi clara quanto à sua aplicabilidade ao Processo do Trabalho. Com efeito, diz o §1o, do artigo 1o daquela lei:
Art. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei. § 1º Aplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição. (grifei)
Conclui-se, pois, que a intimação eletrônica do PJe, mesmo para a audiência de instrução, é considerada uma intimação de vista pessoal do interessado, para todos os efeitos legais. De se destacar que o próprio CPC, em múltiplas passagens, deu preferência à intimação via meio eletrônico, inclusive permitindo ao juiz fazer, de ofício, tais movimentações processuais, como se verifica dos seguintes artigos:
Art. 270. As intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei. Parágrafo único. Aplica-se ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à Advocacia Pública o disposto no § 1º do art. 246 . Art. 271. O juiz determinará de ofício as intimações em processos pendentes, salvo disposição em contrário. Art. 272. Quando não realizadas por meio eletrônico, consideram-se feitas as intimações pela publicação dos atos no órgão oficial.
A possibilidade do meio eletrônico para a realização dos atos processuais foi claramente estabelecida pelo artigo 193 do mesmo CPC:
Art. 193. Os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei. (grifei)
Mas, não é só. A rigor, as intimações, no PJe, são publicadas no DeJT (Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho), cumprindo, também, as diretrizes do CSJT e do TST.
RESOLUÇÃO CSJT Nº 185, DE 24 DE MARÇO DE 2017. (...) Art. 17. No processo eletrônico, as citações, intimações e notificações, inclusive as destinadas à União, Estados, Distrito Federal, Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público, serão feitas por meio eletrônico, sem prejuízo da publicação no Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho (DEJT) nas hipóteses previstas em lei. (https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/102716/2017_res0185_csjt_rep05.pdf?sequence=22&isAllowed=y – acesso em 31/01/23) - (grifei)
O C. TST também editou resolução no mesmo sentido:
RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA Nº 1589, DE 4 DE FEVEREIRO DE 2013 (…) Art. 18. No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, far-se-ão por meio eletrônico, preferencialmente mediante publicação no Portal do PJE, sem prejuízo da publicação no Diário de Justiça Eletrônico, quando necessário. § 1º As citações, intimações, notificações e remessas que viabilizem o acesso à íntegra do processo correspondente serão consideradas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais. (…) (https://hdl.handle.net/20.500.12178/28798 – acesso em 31/01/23)" .
Percebe-se que até mesmo a Fazenda Pública, que detém prerrogativas diferenciadas de outros litigantes comuns, é submetida às intimações por meio eletrônico, com ainda mais razão se deve direcionar a jurisprudência, com relação aos demais litigantes. Destaca-se que, mesmo que a intimação eletrônica se desse sem a publicação no órgão oficial, ainda assim poderia ser válida para as partes que estão cadastradas no sistema. Diz o art. 5o, §6o, da lei 11.419/2006, confirmando, novamente, que a intimação eletrônica é considerada pessoal, para todos os efeitos legais:
Art. 5º As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico. (...) § 6º As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais. (grifei)
No mesmo sentido, a Resolução 185/2013 do CNJ:
Art. 19. No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, far-se-ão por meio eletrônico, nos termos da Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006. § 1º As citações, intimações, notificações e remessas que viabilizem o acesso à íntegra do processo correspondente serão consideradas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais, nos termos do § 1º do art. 9º da Lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006. (grifei) (https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/1933 – acesso em 31/01/23)
Com este mesmo entendimento já decidiu o C. TST, por sua 6a turma, em acórdão na lavra autorizada da Exma. Desembargadora convocada, CILENE FERREIRA AMARO SANTOS, no AIRR-1000645-94.2013.5.02.0317.
CONCLUSÃO
A modernização e informatização do processo são fatos inarredáveis. O processo eletrônico já é uma realidade consolidada no Processo do Trabalho há mais de 10 anos. O acesso à informação processual foi democratizado pelo processo eletrônico, sendo que a legislação e as regulamentações oriundas dos Tribunais e Conselhos Superiores acompanharam tais modernizações. Não mais se justificam exigências pretéritas para que as partes sejam “artesanalmente” contatadas, por exemplo, por oficial de justiça, se já se encontram representadas e/ou cadastradas em autos eletrônicos, podendo, pela via eletrônica, serem cientificadas dos andamentos processuais, como, aliás, prevê a lei. Nesta esteira, não resta dúvida que a intimação das partes para audiências de instrução, via meio eletrônico, com cominação de confissão quanto à matéria fática na eventual ausência injustificada dos litigantes, é válida, eis que amparada por previsão legal e regulamentar que a equipara a intimação pessoal.
REFERÊNCIAS
BARBOSA GARCIA, Gustavo Filipe. Curso de Direito Processual do Trabalho, 10ª Edição, São Paulo: Saraiva Jur, 2022.
Trabalho escravo contemporâneo: a estupidez ou a lógica da riqueza material a qualquer custo
Grijalbo Fernandes Coutinho Coordenador da Comissão Regional sobre o Trabalho Escravo (TRT 10) e Integrante dos Comitês Estaduais de Enfrentamento à Exploração do Trabalho Análogo à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas(CNJ)
Não obstante a luta de fração da sociedade civil organizada brasileira contra as diversas formas de trabalho escravo, a máquina do sistema econômico dominante tem sido mais eficiente, com os meios materiais e ideológicos sob o seu controle propagando e ampliando o labor degradante em atividades produtivas geradoras de riquezas concentradas nas mãos dos donos dos negócios.
Seria por demais ingênuo cogitar que estamos a tratar de um confronto entre seres selvagens e sujeitos civilizados.
Ao contrário, é parte da velha luta de classes que nasceu antes do sistema capitalista de produção, muito tempo antes do enfrentamento ou antagonismo entre burguesia e proletariado por aumento das taxas de mais-valor e da dignidade laboral, respectivamente.
A sociedade do capital, é verdade, exponenciou o conflito como nunca dantes visto nos modelos econômicos escravista e feudal.
Desde logo, cabe assinalar que a escravidão contemporânea não se confunde com o sistema escravagista que vigorou no Brasil por mais de três séculos, quando negros e índios foram reduzidos à condição do “nada” humano, sequestrados, traficados, escravizados, acorrentados, molestados, estuprados, chicoteados, humilhados. Em outras palavras, foram eles e elas trucidados pelo regime econômico da exploração de mão de obra, em nome da obtenção de lucro para a matriz incipientemente capitalista.
E também as versões brasileiras de trabalho forçado, de ontem e de hoje, não se confundem com o escravismo como sistema econômico dominante visto na Antiguidade.
Na Antiguidade, de fato, existiu um sistema econômico escravista, cuja base da sociedade estava amparada no trabalho forçado para a edificação de obras monumentais, o enfrentamento nas guerras de domínio territorial, o sossego das elites em nome do ócio e dos prazeres conferidos exclusivamente a uma minoria guardada pela aversão ao fenômeno labor humano.
No caso do Brasil, durante quase quatro séculos de escravidão, sem jamais relativizar a crueldade e a opressão sobre trabalhadores negros e indígenas, o modelo econômico era pré-capitalista, com o trabalho forçado gerando riquezas capazes de provocar excedentes econômicos e lucros em favor da matriz portuguesa. E perceba- se que neste caso, como o objetivo era o lucro e a concentração de riquezas materiais
para gerar outras, a dureza do trabalho era infinitamente superior àquela da escravidão grega ou romana.
Permeado por uma cultura dotada de fortes traços escravocratas nas relações de trabalho, largamente disseminada entre gerações por meio de atitudes, gestos e iniciativas, o Brasil teve, nas últimas décadas, um aumento muito significativo de denúncias e flagrantes de pessoas trabalhando em condições análogas às de escravo.
Essa introdução tem a finalidade de revelar que enquanto houver assimetrias econômicas e sociais gigantescas entre grupo de pessoas haverá, ineludivelmente, formas velhas ou novas de exploração do trabalho sob os marcos da degradação humana.
Nada mais se fez no Brasil nos últimos anos do que desqualificar o trabalho e a classe trabalhadora.
Flexibilizar, precarizar, retirar e abolir direitos sociais, incluindo “reformas” trabalhistas arrasadoras promovidas por segmentos dos três poderes da República, integram a rotina da agenda política brasileira.
Tal pauta de mão única é reiteradamente anunciada como a saída para a superação da crise econômica, quando, em última análise, a busca desenfreada dessa gente é pelo aumento das taxas de mais-valia, ainda que o trabalho escravo ou degradante passe a integrar com maior frequência algumas atividades econômicas.
Não por outra razão, na atualidade, registre-se, o trabalho escravo encontra campo fértil na cantilena neoliberal que apregoa que “qualquer trabalho é melhor que nada”, exigindo-se, contudo, atos, manobras ou golpes políticos para a sedimentação da mais absoluta precariedade laboral.
Denunciar o trabalho escravo em comissões e comitês do Estado ou da sociedade civil, frente ao aparelho apropriado por quem controla tudo na sociedade de classes, constitui-se quase em uma luta contra os moinhos de vento, considerando as reduzidas chances de vitória, sendo que aqui, ao contrário do clássico de Cervantes, os inimigos escravocratas são reais e não medem esforços para a consecução dos seus objetivos de vida.
Ainda assim, não nos cabe desistir, sem relegar, porém, o complexo processo envolvido na permanente luta contra o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. E como processo, cada qual interessado oferece a sua contribuição direcionada ao enfraquecimento da engrenagem responsável pela trituração diária de direitos humanos da classe trabalhadora.
Como registrei em outro escrito, o trabalhador em condição análoga à de escravo, na atualidade, não é fisicamente chicoteado. Entretanto, não raro, em algumas grandes fazendas, apanha, foge ou morre, não tendo a sua família sequer o direito de sepultá-lo. Na área rural, por exemplo, ele é aliciado para trabalhar em local bem distante de sua residência, com o intuito de desenvolver serviços forçados na mais absoluta precariedade, isto é, sem salários, carteira assinada, alojamentos decentes, instalações sanitárias adequadas, água potável e equipamentos de proteção para desempenhar as suas funções. Muitas vezes não tem nenhum direito trabalhista pago espontaneamente pelo empregador, nem mesmo o salário mensal; o trabalhador já chega ao local da prestação laboral devendo ao patrão, por força dos custos da viagem empreendida de sua cidade até a “senzala moderna”. A sua dívida jamais será paga, pois, para se alimentar, precisa adquirir alimentos no armazém do empregador, cujos preços são elevadíssimos no ilegal sistema de truck system implantado na fazenda. Por outro lado, a eventual ausência de coação física ou de limitação do direito de ir e vir do empregado, por si só, não desnatura o trabalho escravo contemporâneo. Desde que estejam presentes as condições degradantes (ao menos uma das figuras), haverá trabalho análogo ao de escravo, com jornadas extenuantes e intensivas, retenção de salários por descontos de dívida do trabalhador, ambiente laboral inóspito propício ao adoecimento laboral, trabalho forçado, restrição à liberdade de locomoção do empregado, etc.1
Os primeiros casos envolvendo o trabalho escravo contemporâneo no Brasil apareceram no campo, entre os anos 1960 e 1970, sem que houvesse alarde em torno do assunto por força do regime de exceção instaurado no país, com o golpe de 1964.
Uma das funções da ditadura civil-militar era proteger os latifundiários das ameaças de reforma agrária constante da plataforma política de algumas organizações e instituições, incluindo o governo Jango com as suas reformas de base, deposto por um golpe militar em 1964 também pela questão da reforma agrária. Logo, falar em trabalho escravo na área rural, naquela época, implicava desafiar a ordem vigente dos generais.
As denúncias pelos maus tratos no campo ganharam força a partir da ação mais contundente da Comissão Pastoral Terra (CPT), nos anos 1980, que clamava e ainda clama, destaque-se, por reforma agrária, tendo como resposta a represália dos ruralistas consistente no assassinato de líderes campesinos, padres, freiras, ambientalistas e outros simpatizantes da causa dos trabalhadores. Entre tantas vítimas nas últimas décadas, João Canuto, padre Josimo, Chico Mendes e irmã Dorothy Stang representam o engajamento de militantes dos direitos humanos contra a autocracia presente nas relações de trabalho rurais.
Somente a partir do “caso José Pereira”, o tema do trabalho análogo ao de escravo recebeu outra dimensão por parte do Estado. José Pereira, com 17 anos de idade, no ano de 1989, foi reduzido à condição análoga à de escravo na fazenda Espírito Santo, localizada no Estado do Pará. Privado da liberdade de ir e vir, vigiado dia e noite por homens fortemente armados, laborando em péssimas condições de trabalho – ao contrário do que prometera o “gato” no ato do aliciamento –, José Pereira decide fugir no meio da noite na companhia do colega Paraná. Depois de longa caminhada nas terras extensas da fazenda, José Pereira e Paraná são alcançados e atingidos com tiros de fuzil pelos jagunços do latifundiário. Os corpos são jogados em outra fazenda próxima à Espírito Santo. Mas José Pereira, ao contrário do que imaginavam os autores dos crimes, escapou com um olho perdido e várias lesões no corpo, conseguindo chegar à sede da outra fazenda onde fora jogado como se morto estivesse, em busca de socorro. Ao sair do hospital, denunciou o trabalho escravo existente na fazenda Espírito Santo à Polícia Federal bem como o assassinato do colega Paraná e à tentativa de assassinato que fora praticada contra ele.
Passaram-se cinco anos sem que a investigação policial avançasse, esvaziando-se algumas provas importantes para a condenação dos autores dos crimes cometidos contra José Pereira, Paraná e os demais trabalhadores escravizados pelos donos da fazenda Espírito Santo. De igual modo, os processos judiciais depois ajuizados, em número de dois, tramitavam lentamente.
Demonstrada a ineficácia dos recursos internos, as organizações não governamentais Américas Watch e o Centro pela Justiça Internacional, em 16 de dezembro de 1994, denunciaram o Brasil perante a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), pela existência de trabalho escravo no campo e pela violação de direito à vida e à justiça. Em 18 de setembro de 2003, as partes apresentaram petição de acordo, reconhecendo o Brasil a sua responsabilidade, ao mesmo tempo em que assumiu inúmeros compromissos para erradicar o trabalho escravo.2 Desde então, o Brasil, além de reconhecer a existência de trabalho escravo, estabeleceu política nacional de combate a essa prática, celebrando parcerias e convênios diversos com a OIT com o mesmo propósito.
Inúmeros foram os flagrantes de trabalho análogo à de escravo no campo nos últimos anos, na maioria das vezes contando com a ativa participação do intermediário aliciador, também conhecido como “gato”, que se faz passar pela qualidade de empregador dos humildes trabalhadores rurais recrutados sob promessas jamais cumpridas.
A terceirização praticada nas fazendas serve fundamentalmente aos propósitos dos capitais investidos na área rural, no sentido de reduzir os custos com o valor trabalho, tal como ocorre nos demais segmentos econômicos. Há, entretanto, expressiva diferença em relação ao papel do “gato” rural. O escopo de proteção aos empregados no campo é bastante reduzido, diante da fragilidade sindical e dos rasgados traços escravocratas ainda presentes na relação de poder patronal despoticamente exercido contra o trabalho. Sem ressalvas, o ingresso do “gato” (da terceirização) leva consigo o trabalho degradante análogo à de escravo. É para isso que ele foi contratado, ou seja, para aliciar e escravizar trabalhadores. Quando são realizadas as inspeções trabalhistas nas fazendas, o “gato” desaparece sem que ninguém saiba o seu primeiro nome. Evade-se para evitar a prisão em flagrante pelo crime de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo e salvar a pele do real empregador, que também desparece da fazenda até a fiscalização do trabalho se retirar do local.
Impõe-se reconhecer que a intermediação de mão de obra no campo consegue superar os níveis de opressão e exploração existentes em setores econômicos diversos os quais também adotam o modelo de terceirização, interna ou externa, em sua cadeia produtiva. Terceirização na área rural, com ou sem a figura do “gato”, corresponde a trabalho análogo à de escravo.
Engana-se quem pensa estar o trabalho em condições análogas às de escravo limitado ao campo brasileiro: essa é apenas a primeira face mais visível do início dos anos 2000 da superexploração da força de trabalho humana.
É relevante frisar que os agentes econômicos diversificaram os seus investimentos entre os inúmeros setores: muito deles no Brasil com um pé na indústria ou no mundo financeiro e o outro pé na agricultura e pecuária, na grande fazenda para a qual os homens do mercado capitalista se deslocam levemente nos dias de descanso em seus jatinhos ou helicópteros para também conferirem in loco o andamento da boiada e da terra. As grandes fazendas instaladas no Brasil, muitas vezes, pertencem a frações da burguesia industrial, financeira ou comercial. Logo, o trabalho análogo ao de escravo no campo não se restringe à ação dos “rudes” fazendeiros que vivem exclusivamente dos frutos extraídos das atividades rurícolas. Ainda cabe acentuar que inúmeros produtos extraídos do campo integram, depois, a cadeia produtiva industrial.
Outra “descoberta” mais recente dá conta da disseminação do trabalho análogo ao de escravo nos grandes centros urbanos brasileiros, com maior ênfase desse tipo de relação laboral na indústria têxtil da confecção do vestuário de grifes famosas e na área da construção civil ligada ao desenvolvimento de grandes obras públicas tocadas por empreiteiras e de prédios residenciais edificados por construtoras, sempre por intermédio da terceirização de mão de obra. Seus principais clientes são integrantes da classe média alta brasileira, o que tem demandado – conforme várias reportagens jornalísticas – intenso recrutamento de trabalhadores em localidades e países diversos para o calvário urbano da paradoxal modernidade nacional, capaz de restabelecer, vestida de outra roupagem, selvagens formas de exploração do trabalho vivo para conviver “harmonicamente” ao lado da polivalência cibernética exaltada como sinal destacado da “pós-modernidade”.
Há, na verdade, a retomada de algumas das formas supostamente esclerosadas da exploração da mão de obra humana, as quais jamais despareceram completamente do mundo das relações de trabalho, seja em atitudes isoladas ou generalizadas para determinados segmentos. O ambiente econômico-político move as ações do sistema capitalista de produção. Havendo crise, de superacumulação ou sobreacumulação, caminha-se naturalmente pela via da intensificação da exploração do trabalho, cujo êxito ou recuo está diretamente relacionado ao grau do contrapoder a ser exercido pela classe trabalhadora nessa permanente disputa histórica entre explorados e exploradores.
Em outros termos, são restabelecidas formas antigas de exploração do labor humano, agora sob o manto do denominado trabalho escravo contemporâneo ou das condições análogas à de escravo, segundo operações empreendidas pelos órgãos de fiscalização, cujo número de trabalhadores libertados anualmente atesta que a escravidão obreira integra a rotina das relações de trabalho no Brasil, apesar do enfrentamento patronal insistente para apagar os vestígios dos atos criminosos, ao atacar todas e quaisquer medidas aptas a inibir a degradação laboral em seu nível mais elevado para, somente desse modo, manter a tradição escravocrata que sempre humilhou e ainda humilha os segmentos mais débeis da classe trabalhadora.
Para se ter uma ideia da disseminação do grave problema social, contabilizados apenas os casos oficialmente registrados entre 1995 e 2012, foram encontradas quase 40(quarenta) mil pessoas trabalhando em condições análogas às de escravo3.
Embora não existam elementos para estimar um número mais realista da quantidade de trabalhadores atingidos pela escravidão contemporânea no Brasil, é possível dizer, com base nos altos índices de descumprimento da legislação trabalhista, da selvageria das relações de trabalho no campo, das formas radicais de precarização laboral inseridas no cotidiano das cidades, que o número real é infinitamente superior ao constante dos dados oficiais. Saliente-se que a fiscalização do trabalho atua dentro de estreitíssimos limites materiais e estruturais e que os dados oficiais captam somente parte do quadro geral de redução de empregados à condição análoga à de escravo.
Dos casos flagrados de utilização de trabalho análogo ao de escravo – durante quatro anos (2010 a 2013) – em 90% deles havia terceirização de mão de obra (intermediário irregular e “gato” no campo). Entre os resgatados pela fiscalização do trabalho, mais de 80% desse contingente eram de trabalhadores terceirizados4. Traduzindo: o trabalho escravo contemporâneo flagrado pelo Estado brasileiro encontra-se vinculado ao modelo de relação de trabalho que prestigia a terceirização, cujos percentuais de 90% (para casos) e 80% (para trabalhadores resgatados) evidenciam a união indissolúvel firmada entre uma velha chaga da sociedade brasileira e uma prática “moderna”, quase silenciosa, de aniquilar direitos sociais da classe trabalhadora.
Levantamento oficial mais atualizado, indica que, de 1995, desde quando o Estado brasileiro reconheceu a existência da selvagem prática, até 2020, foram mais de 56 mil trabalhadores e trabalhadoras resgatadas da condição análoga ao de escravo, com mais de 112 milhões de reais pagos a tais pessoas a título de verbas salariais e rescisórias durante as operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel(GEFM), algo que sequer restou arrefecido durante o período de isolamento social, conforme se verifica da fonte dos dados atuais citados neste parágrafo:
Em 2020, apesar das medidas de distanciamento social impostas pela pandemia da COVID-19, as ações fiscais da Inspeção do Trabalho não pararam: foram realizadas 276 ações fiscais de combate ao trabalho escravo em 20 Unidades da Federação, que resultaram no resgate de 936 trabalhadores(as) submetidos(as) a condições análogas à de escravo[…] Do total de 276 ações fiscais especificamente realizadas para o combate ao trabalho análogo ao de escravo em 2020, houve resgate em 100 ações fiscais, o que corresponde a um Npercentual de 36% das ações. Este percentual reflete um trabalho extremamente criterioso quanto à aplicação do conceito de escravidão contemporânea no Brasil e a consequente qualificação da situação encontrada como sendo de condição análoga a de escravo. Como resultado destas fiscalizações, 1.316 pessoas tiveram seus contratos formalizados e um total de R$ 3.607.952,32 foram pagos aos trabalhadores e às trabalhadoras a título de verbas salarias e rescisórias5
São números oficiais que chocam, embora se saiba que há milhares de outros Brasil afora não alcançados pela fiscalização do trabalho.
Aliás, a firme atuação da fiscalização do trabalho tem sido objeto de resistência sistemática manifestada por setores empresariais. Alguns, é verdade, apelam para a violência física contra os funcionários públicos auditores fiscais e, principalmente, contra as lideranças da classe trabalhadoras e apoiadores voluntários da causa, com assassinatos cujos criminosos raramente são punidos pela Justiça brasileira.
A Chacina de Unaí ocorrida em 28 de janeiro de 2004 resultou no assassinato, mediante emboscada, de três auditores fiscais do trabalho, Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e do motorista Ailton Pereira de Oliveira, servidores públicos que fiscalizavam fazendas no interior de Minas Gerais onde o trabalho escravo havia sido constatado. E ninguém até hoje encontra-se preso cumprindo pena pelos bárbaros crimes6.
Com o intuito de homenagear os quatro trabalhadores mortos quando do exercício de suas funções, a data de 28 de janeiro de cada ano é celebrada como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, ocasião na qual são lembradas com honras as vítimas da Chacina de Unai e intensificadas as ações do Estado e da sociedade civil para banir histórica chaga social que atormenta o Brasil.
Mas é necessário usar o ano inteiro para combater o trabalho escravo, o trabalho degradante, cabendo a cada um de nós, no âmbito da Comissão Regional sobre o Trabalho Escravo do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, denunciar a existência do labor degradante, realizar eventos, promover ações diversas com o intuito de elastecer o debate com a sociedade civil organizada, revelando, por outro lado, ao nosso público, interno e externo, compreendendo servidoras, servidores, magistradas e magistrados, trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, integrantes da advocacia e do Ministério Público do Trabalho, a gravidade das relações de trabalho no Brasil permeadas pela mais cruel exploração de seres humanos.
Como os escravocratas jamais dão trégua, a luta contra o trabalho escravo não pode cessar um dia sequer.
O dia 28 de janeiro é um dia de lembranças e não de estímulo ao descanso nos demais. E não pode ser apenas um dia de discursos. É mais um dia de luta.
No dia 28 de janeiro de 2022, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, exaltemos, entre outros atos e feitos, os seguintes: a ação cidadã profissional dos fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e do motorista Ailton Pereira de Oliveira, que tiveram as suas vidas brutalmente ceifadas na denominada “Chacina de Unaí” ocorrida em 28 de janeiro de 2004; a coragem do trabalhador José Pereira, responsável pelo reconhecimento oficial da existência, pelo Estado, de trabalho escravo em terras brasileiras; a bravura de Dona Pureza, mulher de luta que buscou o filho tragado pelo trabalho escravo e denunciou ao mundo o que ocorria em grandes fazendas, conforme belíssimo filme brasileiro sob o título “Pureza” do consagrado Diretor Renato Barbieri; o destemor de João Canuto e de tantos outros líderes sindicais assassinados pela ganância rural; o amor ao próximo e sobretudo aos pobres desafortunados do campo, gesto magnificamente exteriorizado por padre Josimo, Chico Mendes e irmã Dorothy Stang, vítimas fatais dessa luta por justiça social que não acaba nunca!
Manual de combate ao trabalho em condições análogas às de escravo. Brasília: MTE, 2011. p. 12-13. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br>. Acesso em: 28 jul. 2014.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório n. 95/03. Caso 11.289. Solução amistosa. Brasil, 24 de outubro de 2003.
ANÁLISE DA SUCESSÃO TRABALHISTA, OU NÃO, PELAS SOCIEDADES ANÔNIMAS DO FUTEBOL – SAF´S. HIPÓTESES DE RESPONSABILIZAÇÃO PELO PASSIVO TRABALHISTA ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DA SAF.
Marcos Ulhoa Dani
Juiz do Trabalho da 10a Região.
Membro da ANDD – Academia Nacional de Direito Desportivo.
A lei 14.193/21 instituiu a Sociedade Anônima do Futebol e dispôs sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e alterou as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998 (Lei Pelé), e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Este novo regramento trouxe uma revolução no mundo jurídico para entidades de prática de futebol e todos os seus atores. A realidade das SAF´s traz um pragmatismo empresarial para o mundo do futebol, que, a rigor, era majoritariamente regido pela emoção da torcida e dos dirigentes de clubes, muitos destes últimos sem formação técnica em gestão e administração empresarial. Ocorre que, para a viabilidade financeira desses novos empreendimentos, há, de fato, a necessidade de uma certa frieza empresarial, garantindo-se a sobrevivência das instituições desportivas. Neste cenário de novidades, novos questionamentos surgem a respeito das eventuais responsabilidades das SAF´s perante o passivo trabalhista das entidades de prática desportiva originais, ou seja, o passivo dos clubes, pessoas jurídicas que deram origem às novas sociedades anônimas do futebol.
A mídia retrata, nos últimos anos, inúmeros grandes clubes do cenário desportivo nacional que foram vítimas de gestões irresponsáveis, ainda sob a forma de associações desportivas sem fins lucrativos. Tais gestões sem estribeiras financeiras levaram muitos deles a um estado de insolvência, inclusive no que toca às dívidas trabalhistas. Mais grave do que o passivo construído foi a ausência de liquidez para a rolagem das dívidas, o que implica, muitas vezes, em sanções no campo desportivo, como os já conhecidos “Transfer bans”, ou seja, a impossibilidade de um clube registrar novos atletas, pela existência de dívidas pendentes com outros atores do mundo desportivo, sejam eles atletas ou outros clubes. Um cenário como este é incompatível com o objetivo econômico e de lucro das SAF´s. Com a introdução da lei 14.193/21, estabeleceram-se premissas legislativas para parcelamento de dívidas, inclusive trabalhistas, gerando um horizonte de possibilidades econômicas para a gestão dos passivos então criados. Foi inaugurado um período em que as resoluções da gestão desportiva das novas SAF´s passam por decisões impopulares do ponto de vista do torcedor. Um exemplo deste tipo de ocorrência se deu recentemente com o goleiro Fábio, que atuou por mais de 17 anos no Cruzeiro Esporte Clube. Ou clube foi cindido, gerando uma nova SAF em dezembro de 2021. A nova sociedade anônima desportiva não renovou o contrato com o goleiro que se tornou ídolo no centenário clube mineiro. A ausência de renovação do contrato com o goleiro que estava prestes a completar 1000 jogos pelo clube gerou indignação na torcida e na imprensa. Mas, há justificativas técnicas para tanto.
Nesse ponto, adentra-se a um dos objetos de estudo do presente artigo, com a análise da legislação, da jurisprudência e da doutrina pertinente no que tange à possibilidade de responsabilização das novas SAF´s em vista de dívidas trabalhistas oriundas das antigas associações desportivas, que foram as pessoas jurídicas precursoras das novas sociedades anônimas do futebol.
Analisaremos a hipótese de criação da SAF que vem sendo mais utilizada, qual seja, a cisão, prevista no art. 2o, II, da Lei 14.193/21. Nesta situação, há dois CNPJ´s, um referente à antiga associação desportiva, que remanesce com a parte social do clube, e o segundo referente à SAF, que assume o departamento de futebol, bens, direitos e deveres condizentes com esse objeto social. No modelo analisado, com a cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original, há a transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol. Pois bem. Os clubes originais detinham e detém inúmeras dívidas trabalhistas anteriores à criação da SAF. A pergunta que ressai é se as novas SAF´s seriam responsáveis pelas dívidas passadas. Analisam-se, então, os artigos 2o, §2o, 9o e 10o da Lei 14.193/21, que dizem, “in verbis”:
“§ 2º Na hipótese do inciso II do caput deste artigo:
I - os direitos e deveres decorrentes de relações, de qualquer natureza, estabelecidos com o clube, pessoa jurídica original e entidades de administração, inclusive direitos de participação em competições profissionais, bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol serão obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol;
(...)
Art. 9º A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei.
Parágrafo único. Com relação à dívida trabalhista, integram o rol dos credores mencionados no caput deste artigo os atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.
Art. 10. O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:
I - por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;
II - por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.” (grifei)
O inciso I, do §2o, do art. 2o, da Lei da SAF estabelece que a sociedade anônima do futebol instituída terá a transferência dos direitos e deveres contraídos pelo clube original, inclusive os deveres decorrentes dos contratos de trabalho. Isto poderia dar uma falsa impressão inicial que a SAF seria responsável solidária pelas dívidas trabalhistas do antigo clube. Ocorre que o artigo 9o da lei esclarece que a SAF não responde pelas dívidas do clube que a precedeu, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social e o pagamento dessas dívidas, pela SAF, limitar-se-ia à forma estabelecida no art. 10o da lei. Este é um ponto nevrálgico da lei. A lei especial de criação da SAF no ordenamento jurídico brasileiro esclareceu que, quanto às dívidas anteriores à SAF ligadas ao seu objeto social, a obrigação das sociedades anônimas do futebol limitar-se-á à forma de pagamento estabelecida no art. 10o da lei. No referido artigo 10o, fica claro que, nesses casos, as únicas obrigações iniciais de pagamento da SAF, no que toca às dívidas anteriores à sua constituição, são: a) transferir ao clube original 20% das receitas mensais correntes auferidas pela SAF, conforme plano aprovado pelos credores e; b) destinar 50% dos dividendos, juros sobre capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista. Ou seja, inicialmente, a obrigação da SAF é somente indireta com os credores trabalhistas pretéritos à sua constituição. A SAF, nos termos da lei, somente transferirá valores ao clube original, este sim responsável direto pelas dívidas pretéritas. Por sua vez, o clube original poderá, na forma do art. 13 e seguintes da lei, se submeter a um Regime Centralizado de Execuções, com parcelamento de suas dívidas, inicialmente, por 6 anos, para pagamento dos credores (art. 15). Caso o clube original, ao final de 06 anos, tenha adimplido 60% da dívida, poderá obter uma prorrogação de prazo no parcelamento por mais 04 anos, podendo, a critério do juízo centralizador da execução, e a pedido do interessado, ser diminuída a participação da SAF para 15% das receitas mensais. O artigo 18 da lei estabelece a preferência no plano de recuperação aos credores trabalhistas, sendo que, segundo o artigo 21, o credor, trabalhista ou não, pode negociar a dívida com deságio. Ao credor trabalhista também é facultado ceder o seu crédito a terceiros, devendo tal fato ser comunicado ao juízo centralizador da execução, para a devida anotação (art. 22), sendo que o adquirente do crédito se sub-rogará em todos os direitos e obrigações do credor original, inclusive a sua posição na fila de credores. Finalmente, nos termos do art. 24 da lei, passado o prazo de 10 anos previstos na lei, somente aí a SAF poderia ser responsabilizada subsidiariamente pela dívida remanescente, sendo que o pagamento do remanescente se daria na forma da parte final do art. 9o da lei, já explicitado, sendo garantida, ainda, a possibilidade de negociação coletiva (art. 19) para ajuste de eventual outra forma de quitação das dívidas.
Ou seja, a lei foca no parcelamento de dívidas pretéritas à constituição da SAF e não em um calote. O vencimento antecipado das dívidas em desfavor da SAF, de imediato, com certeza inviabilizaria o modelo estabelecido. Caso as dívidas, como um todo, fossem automaticamente transferidas à nova sociedade anônima, provavelmente não haveria grande interesse de investidores nacionais ou internacionais em injetar recursos nesta nova forma de organização societária, levando, provavelmente, à bancarrota tradicionais clubes do desporto nacional, bem como deixando à míngua milhares de credores. Desta forma, nos estritos termos da lei especial em comento, não nos parece juridicamente viável a um credor trabalhista, por exemplo, demandar dívidas pretéritas à constituição da SAF diretamente contra a sociedade anônima recém-constituída em uma ação trabalhista. Isto porque, de acordo com a lei, a forma de pagamento dessas dívidas pela SAF só poderia se dar de modo indireto, pelo pagamento de valores ao clube original, e não diretamente ao credor. Em outras palavras, tendo a SAF cumprido as suas obrigações de pagamento ao clube original, na forma dos arts. 9o e 10o da lei, não há como o credor exigir outros valores da SAF, nem lhe demandar diretamente, ou mesmo tentar penhorar seus valores ou receitas. Isto porque a lei estabeleceu que a responsabilidade da SAF nesses casos é somente indireta e direcionada aos clubes originais, estes sim responsáveis diretos pelas dívidas pretéritas. Ou seja, em um primeiro momento, a lei isentou a SAF de responsabilidade direta ao pagamento de dívidas pretéritas à sua constituição. Somente após 10 anos de eventual processo de execução concentrada, e ainda não quitada a dívida, a demanda poderia ser submetida subsidiariamente à SAF, mantida a forma de pagamento do art. 9o da lei. Neste particular, nos parece que, pela teoria da “actio nata”, a parte credora só teria o início de sua pretensão contra a SAF, inclusive para efeitos prescricionais, a partir do fim dos 10 anos, nos termos do art. 189 do CC. Tais conclusões iniciais a respeito da legislação, por óbvio, não impedirão ações incluindo, de plano, as SAFs nos polos passivos das demandas, com arguição, por exemplo, de grupo econômico, inclusive por coordenação. Neste particular, devemos aplicar o critério da Especialidade para a solução de antinomias aparentes. Em outras palavras, não se pode aplicar uma lei geral quando há uma lei especial dizendo em sentido contrário. Não se pode, no caso, aplicar o artigo 2o, §2o, da CLT, lei geral, quando, no particular, há uma lei especial regulando a matéria. Mas, não se pode negar, tais interpretações são as origens da maioria das celeumas jurídicas dos tribunais, criando, ao fim e ao cabo, um ambiente de insegurança jurídicas aos atores sociais, até a pacificação de jurisprudência, o que pode se dar somente anos após os inícios das discussões.
Esclarecidas tais premissas legislativas, voltamos à questão inicial que nos chamou à atenção e à sua justificação técnica mais plausível. Por qual motivo técnico estão sendo tomadas, nas novas SAF´s, decisões impopulares, com a ausência de renovação de contratos, por exemplo, de ídolos históricos dos clubes precursores da SAF? A nosso sentir, este tipo de decisão está sendo tomada para evitar a configuração da chamada “sucessão trabalhista”, prevista nos artigos 10, 448 e 448-A, da CLT. O Professor e Ministro Maurício Godinho Delgado, em sua obra, Curso de Direito do Trabalho, 8a Edição, LTr, na fl. 386, conceitua o instituto:
“Consiste no instituto justrabalhista em virtude do qual se opera, no contexto da transferência de titularidade de empresa ou estabelecimento, uma completa transmissão de créditos e assunção de dívidas trabalhistas entre alienante e adquirente envolvidos”.
A rigor, na sucessão trabalhista, nos termos do art. 448-A, da CLT, o sucessor assume as dívidas do sucedido. O mesmo ilustre doutrinador, entretanto, ressalta na fl. 389 da mesma obra:
“As situações-tipo predominantes de sucessão trabalhista (…) tendem a se acompanhar da continuidade da prestação laborativa pelo obreiro. Ou seja, o contrato permanece intangível com o novo empregador, mantida a prestação laborativa pelo antigo empregado.”
Em que pese o eminente doutrinador estabelecer a possibilidade de responsabilização do sucessor pelas dívidas trabalhistas pretéritas, mesmo que não haja a continuidade do contrato de trabalho anterior, parece-nos que a jurisprudência do TST segue a tendência da necessidade da continuidade da prestação laboral para a caracterização perfeita da figura da sucessão, com a possibilidade de responsabilização do sucessor. Neste sentido, o TST:
"ILEGITIMIDADE PASSIVA DE PARTE – DESCARACTERIZADA A HIPÓTESE DE FRANQUIA – ARRENDAMENTO. Configurado o contrato de arrendamento, o arrendatário adquire, ainda que temporariamente, um bem do arrendador, ocorrendo, assim, mesmo que provisoriamente, a substituição do antigo titular passivo da relação empregatícia por outra pessoa. Se houver continuidade da prestação dos serviços do reclamante, configurada estará a sucessão trabalhista, nos moldes estabelecidos nos artigos 10 e 448 da CLT, visto que preenchidos os dois elementos essenciais para sua caracterização, quais sejam, a transferência de um estabelecimento, mesmo que provisoriamente, de um para outro titular e a não ruptura do contrato de trabalho do empregado. No presente caso, o arrendamento constitui, sem dúvida nenhuma, uma das hipóteses de sucessão trabalhista, estando, assim, regulamentado pelos artigos 10 e 448 da CLT. Assim sendo, tendo havido sucessão trabalhista, o arrendatário, que neste caso é a Empresa Latino Americana de Distribuição de Alimentos, responde pelos efeitos passados, presentes e futuros da relação empregatícia havida com o recorrido, não havendo qualquer responsabilidade do arrendador, Companhia Brasileira de Abastecimento. Recurso de revista conhecido e provido" (RR-485545-02.1998.5.23.5555, 1ª Turma, Relator Juiz Convocado Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 08/08/2003). - grifei
Neste mesmo sentido, o saudoso e ilustre Délio Maranhão, em sua imortal obra coletiva “Instituições de Direito do Trabalho”, ao preconizar no volume I da obra, às fls. 302:
“Para que exista a sucessão de empregadores, dois são os requisitos indispensáveis: a) que um estabelecimento, como unidade econômico-jurídica, passe de um para outro titular; b) que a prestação de serviço pelos empregadores não sofra solução de continuidade”. (grifei)
Ou seja, nos parece que, em havendo a continuidade da prestação de serviços pelo antigo empregado atleta, sem solução de continuidade, abre-se a possibilidade de configuração da sucessão trabalhista, com a responsabilização da SAF pelas dívidas trabalhistas pretéritas daquele atleta de imediato, eis que se configurou o instituto da sucessão. Seria, em outras palavras, uma novação subjetiva por expromissão, nos termos do art. 362 do CC. Nesta esteira, aplicar-se-ia o disposto no art. 448-A, da CLT. Ou seja, se por um novo ato de vontade da SAF, houve a renovação de um contrato de trabalho anterior à sua constituição, sem solução de continuidade na prestação de serviços, há uma novação, com a assunção de toda a dívida anterior, de maneira direta. Assim não ocorrendo, ou seja, não havendo a renovação de contratos e não havendo a continuidade da prestação de serviços (ausência de solução de continuidade), a dívida trabalhista pregressa permanece com o clube original, com o modo de pagamento na forma específica da SAF. Desta forma, não haveria a possibilidade de cobrança direta da SAF pelas dívidas pretéritas, ao menos nos primeiros 06 ou 10 anos iniciais de pagamento concentrado de execuções, até pela incidência da lei especial como já explicado, em detrimento da lei geral (CLT). Por outro lado, se a SAF entender pela continuidade da prestação de serviços do atleta, membro de comissão técnica ou outro funcionário ligado ao departamento de futebol, sem solução de continuidade, passa-se a um ato de vontade da nova sociedade que se sobrepõe à lei especial, atraindo a figura da sucessão, com todas as suas consequências jurídicas.
Concluindo, verificamos, a princípio, três situações e teses no que tange à possibilidade de responsabilização da SAF´s pelas dívidas trabalhistas pretéritas dos clubes originais. Primeira: o ex-empregado aciona diretamente o clube e a SAF, alegando grupo econômico e responsabilização solidária, hipótese que não vislumbramos respaldo, haja vista a prevalência da lei especial sobre a lei geral; Segunda: Configuração da sucessão de empregadores, com a continuidade da prestação de serviços do empregado à SAF, sem solução de continuidade, o que geraria a figura da sucessão trabalhista, por ato de vontade da nova sociedade, que resolveu continuar a relação empregatícia, atraindo a hipótese do art. 448-A, da CLT. Esta hipótese explicaria, em termos técnicos, a não renovação de contratos de trabalho com ídolos históricos dos clubes, pelas novas SAF´s. Terceira: Em havendo plano de execução concentrada pelo clube original, se o clube não adimplir completamente com o passivo trabalhista ao final de 10 anos, a SAF poderá ser responsabilizada subsidiariamente pela dívida remanescente. Há, ainda, a nosso sentir, uma quarta hipótese, qual seja, se a SAF não cumprir com as suas obrigações perante o clube original, na forma do art. 10 da lei especial, abrir-se-ia a possibilidade de penhora de tais valores, nos limites legais, pela massa de credores, a fim que as dívidas sejam adimplidas pelo clube original.
É claro que este breve estudo não é exaustivo. Sabe-se que a criatividade jurídica dos advogados e a independência funcional de cada magistrado do trabalho que se depararem com tais questões podem levar a soluções diversas (e mais inteligentes) das aqui analisadas. Mas isto só será descoberto no futuro, pela pacificação jurisprudencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho - 8a ed. - São Paulo: LTr, 2009.
SUSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho, Volume I, 20a Edição atualizada por ARNALDO SUSSEKIND e JOÃO DE LIMA TEIXEIRA FILHO – São Paulo: Ltr, 2002.
A Juíza do Trabalho da 10ª Região, Maria José Rigotti Borges, publicou artigo na Carta Capital, no dia 06/11/2020, denominado “Não somos soldados: mulheres e o cuidado na área de saúde”.
O artigo trata do fato de que na área de saúde as mulheres são a maioria dos trabalhadores, o que reflete inclusive o fato de que na sociedade atual a mulher tem mais responsabilidade pelo chamado trabalho de cuidado, seja o remunerado, seja o não remunerado. Essa responsabilidade, segundo a autora, decorre de uma divisão sexista do trabalho, no qual o trabalho atribuído ao homem é considerado de maio responsabilidade.
O artigo trata ainda da alta mortalidade das trabalhadoras mulheres do segmento de saúde (inclusive em funções de apoio, geralmente terceirizadas), da discriminação das mulheres na medicina e da necessidade de revisão das causas que levam a esse difícil e preocupante quadro.
Segue o artigo.
Vale a leitura!
‘Não somos soldados’: mulheres e o cuidado na área de saúde
Na linha de frente contra a Covid, mulheres estão mais expostas aos riscos aumentados de contaminação e riscos ocupacionais
Maria José Rigotti Borges
"Os cuidadores são a maioria mulheres, não são soldados” afirmou Sandra Laugier ao Jornal francês Reporterre em março deste ano[1]. E prossegue “o trabalho das mulheres permanece desvalorizado”.
A filósofa francesa se referia à inapropriada utilização da linguagem bélica da metáfora da guerra para falar sobre quem está à frente no trabalho de cuidado no enfrentamento à pandemia da Covid-19 na área de saúde: na sua imensa maioria mulheres.
A responsabilidade pelo trabalho de cuidado em geral, sustentáculo da vida em sociedade, tanto o remunerado profissionalizado, como o não remunerado na esfera privada, é ainda atribuído de forma desigual e prioritária às mulheres, fruto da divisão sexual do trabalho.
A divisão do trabalho com bases sexistas foi construída sob pilares ideológicos patriarcalistas, fincados, por um lado, no ideário binarista sexista de que existiriam trabalhos de homens e trabalhos de mulheres. Por outro lado, pelo critério hierárquico na falsa premissa de que um trabalho de homem “valeria” mais do que um trabalho de mulher.
Essas bases ideológicas, apesar de calcadas em premissas errôneas, são as que ainda sustentam e naturalizam um processo específico de legitimação do ideário patriarcalista na acepção de limitação do gênero ao sexo biológico, reduzindo as práticas sociais a “papéis sociais sexuados”[2].
E, nas experiências concretas de mulheres, somam-se a esse, outros marcadores de opressão, como os relacionados à classe e raça.
As reflexões aqui propostas referem-se à abordagem das marcas de desigualdade de gênero presentes em profissões de cuidado na área de saúde.
Em nível global, cerca de 70% das equipes de trabalho em saúde e serviço social são compostas por profissionais do sexo feminino, incluindo, médicas, enfermeiras, parteiras e trabalhadoras de saúde da comunidade[3].
No Brasil, o trabalho feminino corresponde em torno de 80% do total de trabalhadores na área de saúde nas principais categorias diretamente envolvidas em ações de atendimento de saúde da população[4].
E, paradoxalmente, na mesma medida em que essas profissões passaram nas últimas décadas pelo fenômeno da “feminização”, decresceram para tais profissões a valorização, a remuneração e o prestígio social, evidenciando, também na área da saúde, a desigualdade de gênero verificada em outros setores da sociedade.
Mulheres nos cuidados de Enfermagem
As mulheres representam em torno de 85% do total de profissionais nos serviços de enfermagem (enfermeiros/as, técnicos/as e auxiliares)[5].
São esses os/as profissionais que executam o trabalho cotidiano direto de cuidado e atenção, de administração de medicamentos e limpeza dos corpos, o que é absolutamente essencial na recuperação de pacientes.
A essencialidade, contudo, é contrastada pelo fato de que são profissionais, na imensa maioria mulheres, que trabalham em condições historicamente precárias, em turnos exaustivos e sobreposição de contratos de trabalho, escassez ou inadequação de equipamentos de proteção individual (EPIs), bastante evidenciadas pela pandemia. Convivem com pauta de lutas históricas, como a jornada de 30 horas e melhores condições remuneratórias.
O Observatório da Enfermagem tem registrado um crescimento recorde de óbitos de profissionais de enfermagem em casos suspeitos ou confirmados de coronavírus, comparativamente a outros países.
Com a pandemia, são profissionais que estão ainda mais expostas à sobrecarga física e psicológica, na rotina diária de convivência com o medo de se contaminarem e de levarem o contágio ao ambiente familiar.
Mulheres nos cuidados de Medicina
A área profissional de Medicina é a única categoria da saúde que não apresenta o mesmo quantitativo majoritário de mulheres, representando um pouco menos da metade (47,5%) do total de médicos no país.
Contudo, se por um lado a Medicina é a categoria da área de saúde que tem melhor remuneração e valorização social, por outro, também não escapa à forte marca da desigualdade de gênero.
Pesquisas têm demonstrado uma significativa desigualdade salarial entre médicas e médicos.
Na disputa pelos maiores rendimentos, as médicas brasileiras têm quatro vezes menos chance do que os colegas homem.
Mesmo quando as pesquisas fazem ajustes de dados para fatores de trabalho como carga horária, número de plantões, trabalho em consultório, tempo de prática e especialização, a desigualdade salarial entre homens e mulheres permanece, ficando evidenciado que a desigualdade salarial se deve unicamente à persistente desigualdade de gênero.
Também é dado relevante observar que, ainda que as mulheres médicas sejam quase metade dos profissionais da categoria, elas são notória e absolutamente sub-representadas em espaços decisórios dentro da profissão, como no Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira e a Academia Nacional de Medicina.
Mulheres nos cuidados de apoio na saúde
Nas funções essenciais de apoio para os cuidados de manutenção dos ambientes de saúde, também as mulheres são maioria, muitas em sistema de terceirização em contratos precários e desvalorizados.
São recepcionistas, atendentes e profissionais de limpeza, mas cuja invisibilização se evidencia pelo fato de serem profissões para as quais sequer existem dados sistematizados que permitam aferir objetivamente as condições de trabalho e os vieses de gênero, conforme acentuado no artigo acima mencionado.
São as mulheres, portanto, que estão na linha de frente do combate à Covid-19 na área de saúde.
São elas que estão diretamente envolvidas nos procedimentos de cuidado aos indivíduos e, portanto, mais expostas, não apenas aos riscos aumentados de contaminação, mas, também, aos demais riscos ocupacionais.
Menciona-se, ainda, o grave problema de omissão dos ambientes públicos e privados de saúde em proporcionar afastamento dos/as profissionais pertencentes a grupos de risco, incluindo gestantes e lactantes, muitas das quais tendo que recorrer à Justiça para terem esse direito garantido.
É fundamental compreender os ideários que sustentam e naturalizam os focos de opressão nas relações sociais, que se revertem em desigualdades inaceitáveis.
Reforça-se o teor da Agenda 2030 da ONU, pautada em um consenso internacional sobre a importância crucial da igualdade de gênero e a sua contribuição para a realização dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Para além das palmas ou da metáfora deslocada de “condecorações de guerra”, é premente que se lancem luzes sobre essa extensa rede profissional na área de saúde, enfrentando, de forma séria e responsável, a questão correlata da desigualdade de gênero.
E a pandemia nos ensina o quanto isso é urgente!
*Maria José Rigotti Borges é Juíza do Trabalho da 10ª Região. Mestranda em Sociologia pela Universidade de Coimbra e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia).
A estrutura sindical é uma das instituições mais duradouras do país, tendo sido mantida na redemocratização de 1946 e preservada pela ditadura militar iniciada em 1964, nesse último caso porque atendia à finalidade de controle do movimento sindical – como se sabe, na ditadura, houve diversas intervenções em sindicatos e deposições de diretorias. A estrutura também foi preservada pela Constituição de 1988, porque o sindicalismo então emergente via nela sua base de sustentação.
Ela tem servido como mecanismo de intervenção do Estado no mercado e nas relações trabalhistas, e foi assim novamente utilizada em 2017: sem discussão social sobre o conjunto, a supressão das contribuições compulsórias pela “reforma trabalhista” (Lei nº 13.467/2017) serviu tão somente ao enfraquecimento dos sindicatos, sob o pretexto de impulsionar e liberalizar a economia.
Até então, a mencionada estrutura compunha um conjunto coerente. Seus três elementos fundamentais – registro sindical, unicidade e contribuições compulsórias – funcionavam de modo harmônico, mas conduziam à dependência dos sindicatos do Estado. A mudança promovida pela “reforma trabalhista”, ao estilo “terra arrasada”, não permitiu nenhum passo significativo em direção a uma efetiva liberdade sindical. Houve apenas a retirada da principal fonte financeira dos sindicatos, com a manutenção dos demais elementos que ligam os sindicatos à burocracia estatal – aos quais se somam as previsões legais sobre a definição de categoria ou as regras de composição das diretorias.
A permanência da estrutura sindical tem relação com a complexidade do assunto, que perpassa o significado da liberdade sindical garantida constitucionalmente. Entretanto, nada mais contrário à liberdade sindical do que romper, sem um diálogo amplo e legítimo, os demais elementos daquela estrutura, em nome, supostamente, dessa mesma liberdade. É inegável o autoritarismo dessa postura de abalo à autonomia financeira, sem preocupação com os elos existentes com os demais elementos da estrutura historicamente construída e alijando o movimento sindical desse debate.
Não é pela simples alteração do texto legal ou constitucional que a liberdade sindical será efetivada. Crença em sentido diverso é ingênua ou carrega a intenção de aprofundar a crise sindical. Isso porque a liberdade efetiva exige o estabelecimento de condições materiais para o seu exercício pelos atores do mundo do trabalho. Qualquer proposta de implementação de uma liberdade meramente formal, ainda que travestida de aparente amplitude – como a formação de sindicatos por empresas – servirá, mais uma vez, tão somente ao propósito de enfraquecimento do movimento sindical, com prejuízo aos trabalhadores.
A pandemia do novo coronavírus ampliou os impactos econômicos e sociais que lhe são anteriores, com a progressiva degradação dos empregos no país – quase dois milhões de pessoas buscaram o auxílio do seguro-desemprego desde então. Sem uma organização sindical democraticamente estruturada, com condições formais e materiais de representação e negociação coletiva, não há perspectivas de mudanças significativas desse quadro. É imprescindível rejeitar o discurso falacioso da cooperação e da negociação individual entre trabalhador e empregador. Ele não é sincero ou minimamente embasado em evidências concretas. A recente movimentação dos trabalhadores de aplicativos (“breque dos apps”) confirma e ilustra essa falácia.
A discussão sobre a estrutura sindical exige a adoção de um procedimento democrático que lhe confira legitimidade. Isso será alcançado apenas mediante amplo diálogo social, em que os interessados, em particular, as entidades sindicais (e não apenas as alinhadas aos propósitos do governo), os trabalhadores e os empregadores participem. Se a questão é como implementar a liberdade sindical, é necessário que os atores sociais digam o que entendem por liberdade sindical.
Aqui, a forma, o procedimento, inevitavelmente, interfere no resultado. A história brasileira já demonstrou que não se constrói – nem se impõem – uma democracia de cima para baixo. E não há observadores privilegiados na sociedade. Ou seja: não há comissão de notáveis ou estudiosos que possa, por si mesma, levar à formação de uma instituição social legítima. Isso vale para a organização sindical. É inviável alcançar uma estrutura sindical democrática se o procedimento para sua (re)formulação não for igualmente democrático.
NOEMIA PORTO – Juíza do Trabalho e Presidente da Anamatra. Pesquisadora do Grupo Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo (CNPq/UnB)
RICARDO LOURENÇO FILHO – Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB).
Esse artigo foi originariamente divulgado no site do JOTA, em 20/08/2020.
Noemia Porto, juíza do Trabalho, mestre e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
O trabalho em frigoríficos é sinônimo de matemática da produção, contabilizada em segundos, minutos, horas e jornada, com pouca ou nenhuma preocupação com o custo (humano) que resulta de se manter esse sistema. Temas como limites da jornada, desgaste do corpo do trabalhador, imposto por ritmos extenuantes, e, ainda, o assédio moral, e agora a contaminação pelo novo coronavírus, são constantes, e, infelizmente, persistentes, na realidade concreta deste segmento econômico.
A Medida Provisória n° 927, editada em 22 de março de 2020, contemplando regras trabalhistas para enfrentamento da emergência de saúde pública, não foi convertida em lei (“caducou”). Dentre as polêmicas que carregava esteve a tentativa, via relatório do deputado federal Celso Maldaner (MDB-SC), de introdução de norma permanente, sem nenhuma relação com a pandemia, pertinente à restrição de pausas a que os empregados que trabalham no interior das câmaras frigoríficas têm direito, previstas no art. 253 da CLT. Depois, o relator recuou quanto a essa tentativa de atingir norma de Medicina e Segurança do Trabalho.
Recente relatório do Ministério da Economia indica que, no mês de maio deste ano, foram contabilizadas paralisações em 47 abatedouros frigoríficos sob inspeção ano, foram contabilizadas paralisações em 47 abatedouros frigoríficos sob inspeção federal, dos quais 8 por motivos relacionados à transmissão por Covid-19, com interdição promovida por órgãos externos, dentre eles a Secretaria de Saúde, a Secretaria do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.
No final do mês de junho de 2020, em decisão colegiada, e atendendo à demanda judicial proposta pelo Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região restabeleceu a interdição da JBS em Passo Fundo (RS), considerando que as irregularidades praticadas, com violação a normas de segurança ambiental, estavam colocando em risco não apenas os trabalhadores como também os demais moradores do município. Outras decisões da Justiça do Trabalho pelo país indicam a mesma preocupação com o avanço da contaminação nos diversos frigoríficos.
Certamente, trata-se de atividade econômica essencial, que é a do abastecimento alimentar, todavia, isso não pode se dar a custo da vida e da saúde dos trabalhadores.
Em 2011, a ONG Repórter Brasil, com apoio, dentre outras entidades, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), produziu o documentário “Carne e Osso”, que permitiu uma análise crítica do trabalho em frigoríficos e contribuiu para o diálogo tripartite, entre o governo, a representação de trabalhadores e de empregadores. O resultado foi a edição, em abril de 2013, da Norma Regulamentadora (NR) 36. Esse marco regulatório tem por finalidade estabelecer diretrizes que possam contribuir para a prevenção de acidentes e de adoecimentos, cujos índices são altíssimos na indústria frigorífica. Há até hoje, porém, uma conta que não fecha, qual seja, as empresas produzem mais doentes do que a cobertura propiciada pela arrecadação de valores pagos a título de seguro social. Uma força-tarefa recente na cidade de Londrina (PR), por exemplo, revelou que mais da metade dos trabalhadores entrevistados assumiram ter tomado remédio ou aplicado emplastros ou compressas para conseguir trabalhar.
Com quase uma década de intervalo entre “Carne e Osso” e os acontecimentos recentes dos tempos de pandemia, ainda não foi possível superar as reflexões que continuam sendo necessárias sobre pausas ergonômicas e térmicas e sobre o equilíbrio do meio ambiente laboral. Isso mostra a dificuldade brasileira de se alcançar uma etapa mais avançada em que os direitos trabalhistas sejam tratados como direitos fundamentais. O cenário permanece permeado pela instrumentalização das pessoas, sem respeito a elas enquanto sujeitos de direitos.
A indústria frigorífica brasileira, que conquistou o mercado internacional, é vista como orgulho para o país. De fato, Estado e sociedade têm interesse na manutenção e no aperfeiçoamento desse segmento, que gera diversos empregos formais e possui cadeia produtiva muito longa. Além disso, a arrecadação propiciada por tais empresas representa montante relevante no que diz respeito ao FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Todavia, para a fiscalização do trabalho, os trabalhadores, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e o Poder Judiciário Trabalhista aparece uma faceta diferente, qual seja, a de um setor que, desenvolvendo as suas atividades, deixa um rastro de trabalhadores doentes. Ao fazê-lo, começa, inclusive, a prejudicar o fluxo exportador do Brasil.
No documentário de 2011, impressionam os relatos de dor e de sofrimento; de sentimento de abandono; de atos de fiscalização das autoridades públicas que não modificam a realidade; de descaso do setor econômico; e de infortúnios que atingem definitivamente a vida dos trabalhadores, não apenas no âmbito profissional, mas também familiar e social. Esse retrato da realidade, conforme advertido no documentário, revela um problema do conjunto da sociedade e não apenas de um setor. Durante a pandemia, produzir a qualquer custo, inclusive o custo da vida de quem trabalha, apenas emprestou colorido de tragédia e de atualidade a essa narrativa. O relógio que designa uma produção que não pode parar é a fotografia de um sofrimento banalizado em carne e osso.
Na dimensão constitucional democrática de direito, não se pode ignorar a situação dos trabalhadores em frigoríficos. Além dos já conhecidos altos índices de adoecimentos e de acidentes nesse ramo, agora está em curso uma pandemia que atinge e contamina os trabalhadores. Essas ocorrências representam substancial desafio à realização de direitos fundamentais e ao ideal de um desenvolvimento econômico sustentável.
A Constituição de 1988 assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. É garantido, ainda, seguro contra acidentes do trabalho, a cargo do empregador, mas sem excluir a indenização por este último devida em caso de dolo ou culpa. Em termos constitucionais, o meio ambiente, enquanto bem essencial à sadia qualidade de vida, foi alçado ao patamar de direito fundamental. Essas são normas de observância obrigatória pelo conjunto da sociedade.
Os trabalhadores continuam a ser vistos e tratados como elementos da produção que precisa ser organizada e que não pode parar. Há algo de velho e de novo nesse cenário, ou seja, a visão do trabalho, e do trabalhador, como mercadoria, sem uma reorganização produtiva promotora da aliança indissociável entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social para todos. A questão do trabalho em frigoríficos permanece na pauta dos atores do sistema de justiça para não se permitir a banalização do sofrimento.
Por Grijalbo Fernandes Coutinho - Magistrado do trabalho, ex presidente da Amatra 10(1999 2001 e 2001 2003) e da Anamatra(2003 2005).
Existe uma pandemia em curso.
E essa pandemia é agravada com a pandemia da Covid-19.
Trata-se da pandemia antissocial obcecada pela informalidade no mercado de trabalho brasileiro.
Na realidade, sob a matriz dominante financeira, o capital globalmente organizado, por uma série de circunstâncias econômicas e políticas – aqui não avaliadas por conta da brevidade do ensaio – decidiu nas últimas décadas demolir quaisquer limites civilizatórios outrora conquistados pela classe trabalhadora após acirrados processos culturais de luta.
Para enfrentar a deterioração da taxa de lucro e aumentar as riquezas materiais concentradas, o sistema econômico dominante, assim preponderante de forma inconteste nos dois últimos séculos, quer espremer ainda mais a sua fonte de riqueza primordial, intensificando a ação política para diminuir o preço do valor da força de trabalho.
Não é, na essência, a revolução da microeletrônica que sustenta a opulência da sociedade do lucro.
Ledo engano.
A tecnologia sempre foi, desde o princípio do revolucionamento industrial, meio ou mecanismo para promover rasgadas mudanças no processo produtivo, entre tantas outras, acelerar o rebaixamento das condições de trabalho, a supressão de algumas atividades humanas, a divisão sexual do trabalho e o estranhamento do trabalhador em relação à própria tarefa por ele executada, no contexto mais geral.
O fim em si mesmo da sociedade animada pelo lucro é o trabalho vivo e quanto por ele se remunera, daí porque o seu caráter predador contra as eventuais conquistas trabalhistas.
Valor-trabalho, mercadoria, mais-trabalho vivo e mais-valor ainda são as chaves para a compreensão do movimento empreendido mundialmente para quebrar a formalidade laboral, com a consequente supressão de direitos sociais de trabalhadoras e trabalhadores.
A riqueza tecnológica ou cibernética como resultado do trabalho cristalizado nas máquinas, de fato, pode ser uma aliada do sistema econômico para acelerar o processo de informalidade laboral.
Ricardo Antunes, em instigante ensaio recente, revela que, em tempos de pandemia da Covid-19, as formas precárias de trabalho têm aumentado exponencialmente, principalmente com o fenômeno da “uberização” como método de trabalho para muito além do aplicativo de transportes. Trata-se do uso de ferramentas eletrônicas com o intuito de abocanhar trabalho vivo (humano) informal e por preço irrisório. Hoje essa modalidade de precarização das relações de trabalho já alcançou inúmeras atividades e categorias profissionais, todas elas sem direitos do trabalho[1].
Os artifícios engendrados para quebrar os contratos formais protegidos pelo Direito do Trabalho, mais do que vagueiam como almas perdidas, passeiam com razoável desenvoltura sob a realidade brasileira, sejam em suas vertentes econômicas, políticas ou jurídicas.
A palavra de ordem no Brasil, notadamente a partir de 2016, por parte do mercado financeiro e de seus seguidores espalhados nas instituições, é única.
Propaga-se pelos mais variados meios ser imprescindível retirar direitos da classe trabalhadora para propiciar o crescimento econômico e gerar empregos, fórmula velha testada lá fora e aqui, sempre com retumbante fracasso até para o que se propõe discursivamente, sem desprezar, por outro lado, o aumento dos níveis de pobreza em todos os locais nos quais a dosagem do veneno liberal, neoliberal ou ultraliberal fora introjetada na veia da sociedade.
Em um mercado de trabalho extremamente desregulado, como é o brasileiro, que também carrega pesada herança de opressão ao labor humano e tem fração desse ranço ainda disseminado na prática das relações sociais, a promoção da política de incentivo à informalidade pode ser o decreto de liquidação institucional do país como nação constitutiva de um povo com direitos econômicos, sociais e culturais.
E a informalidade laboral – sequer seria necessário lembrar – atinge a classe trabalhadora, em primeiro lugar, mas também provoca estragos irreparáveis ao conjunto da sociedade, podendo ocasionar a falência do próprio poder público (mitigação no recebimento de contribuições sociais diversas e impostos) e de setores capitalistas de menor porte, que não vivem da usura ou do atraente rentismo oferecido pelo mercado financeiro.
No Brasil, sem prejuízo da larga utilização de todos os métodos “uberistas” de plataformas eletrônicas criadas para explorar o trabalho humano sem formalidade legal e sem direitos do trabalho, desenvolve-se frenético movimento na atualidade em prol da imunidade trabalhista legal, qual seja, aquela que confere a determinados setores econômicos e não econômicos a prerrogativa jurídica de não ter, em tese, as suas relações de trabalho regidas pela Constituição da República (art. 7º) e pela CLT.
São as relações de trabalho nas quais a parte trabalhadora, pessoa física, é declarada antecipadamente pela lei como “autônoma”, “parceira” “agente terceirizante” ou sujeito similar sem direitos socais básicos, tais como férias, 13º salário, previdência social, limitação da jornada e outras condições dignas de labor.
Apenas a título de ilustração, notamos que alguns segmentos econômicos relevantes receberam imunidade prévia trabalhista, no sentido de que, observadas as condições estabelecidas na lei respectiva, inexiste vínculo de emprego com os trabalhadores que lhes prestam labor.
Casos mais antigos foram igualmente tratados com distinção jurídica protetiva aos donos dos negócios, entre os quais destacam-se: 4) cooperativas de trabalho protegidas em detrimento das pessoas que lhes prestam serviços (Lei nº 8.949, de 9 de dezembro de 1994); 5) imobiliárias e incorporadoras em sua relação de trabalho com os corretores (Lei nº 6.530, de 12 de maio de 1978); e 6) grandes indústrias, fornecedoras e marcas de produtos na relação de trabalho com os representantes comerciais (Lei nº 4.886, de 9 de dezembro de 1965).
Além de categorias econômicas e não econômicas (tomadores de serviços domésticos) como beneficiárias de regime jurídico privilegiado das relações de trabalho, não é tão rara a contratação de advogadas e advogados por escritórios de advocacia dos mais variados portes sob o manto jurídico da existência do regime de sociedade (profissional da advocacia associado) prevista no Estatuto dos Advogados (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; Lei nº 13.247, de 12 de janeiro de 2016), cujos direitos do trabalho muitas vezes são depois reivindicados perante à Justiça do Trabalho por pessoas físicas da advocacia as quais refutam veementemente a qualidade de sócio ou associado.
Se não bastasse a contrarreforma trabalhista de 2017, esse conjunto de alterações da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) espalha, sem nenhuma pertinência temática com o objeto da CLT, a sua vocação destruidora do juslaboralismo para declarar que a contratação de autônomo, observadas as formalidades legais (Lei nº13.467, de 13 de julho de 2017; art. 442-B), afasta a relação de emprego, até então cuidada com zelo em quase toda a CLT como diploma jurídico existente para regular o trabalho socialmente protegido.
Quer-se verdadeiramente estimular a fuga da CLT no âmbito do próprio corpo normativo da Consolidação das Leis do Trabalho.
Parece paradoxal a situação.
Era como se alguém dissesse em tom de voz moderado que esta é a CLT, o documento infraconstitucional mais relevante de regência das relações de emprego no Brasil para, logo em seguida, proclamar em alto e bom som que aqui também existe trabalho anticeletista à disposição.
É o que se deflui da mensagem contida no artigo novo 442-B, incorporado em 2017 à Consolidação das Leis do Trabalho.
Nenhuma das leis interpretadas como concessivas de imunidade trabalhista antecipada a determinados segmentos econômicos deveria ter relevância jurídica.
Todas elas, leis e empresas, estão submetidas ao crivo da Constituição da República (arts. 7º e 170).
E assim também deveria ser porque a CLT estabelece os supostos da relação de emprego, definindo inclusive a qualidade de empregador (art. 2º) e a condição de empregado (art. 3º).
Os dispositivos celetistas apontados anteriormente jamais foram – como não poderiam ser – revogados por leis esparsas.
Ademais, orienta o Direito do Trabalho o princípio da primazia da realidade, de modo que as formas jurídicas escapatórias do juslaboralismo, mais ou menos sofisticadas ou tão somente improvisadas, não se sobrepõem à realidade, isto é, não superam “ao que sucede no terreno dos fatos”, nos dizeres clássicos do saudoso juslaboralista uruguaio Américo Plá Rodriguez[2].
O problema é o poder simbólico exponencialmente elevado quanto à existência de uma ordem emanada do poder público competente para legislar sobre o Direito do Trabalho e a sua negação, o não-direito do trabalho. Este simbolismo muitas vezes funciona como elemento de construção de suas próprias realidades ideológicas paralelas e de consequente dissolução das resistências ao arbítrio[3].
Na realidade, deve se atentar para o significado prático quase inexpugnável de leis de imunidade trabalhista aprovadas com a finalidade de afastar a existência da relação de emprego entre determinados setores econômicos e a gente trabalhadora que lhes presta serviço de forma pessoal, em caráter não eventual, mediante remuneração e com a presença de alguma das faces existentes de subordinação jurídica.
São leis que, em tese, deixam trabalhadoras e trabalhadores sem direitos do trabalho, sobretudo quando a sua interpretação relega a existência do Direito Constitucional do Trabalho.
Muitas dessas leis, como se percebe pelo olhar do fenômeno temporal, são precocemente “uberistas”, diante da perspectiva movida pelo estímulo à informalidade laboral. Nasceram antes, portanto, da introdução da “uberização” nas relações de trabalho.
Voltando ao sentido prático das leis de imunidade trabalhista, os donos dos negócios que contratavam antes sem a formalização laboral, inegavelmente, vão continuar com a prática da informalidade, agora mais encorajados pela informalidade consagrada em lei.
É pouco provável que os demais integrantes dos setores econômicos alcançados pela imunidade trabalhista, até então mantendo relações de trabalho regidas pela CLT, não adotem igual caminho, até porque uma das leis do mercado econômico é a concorrência magnetizada pelo oferecimento do menor preço do produto e dos serviços aos consumidores, seja qual for o custo social advindo da ferrenha disputa capitalista.
E o valor do trabalho vivo, inegavelmente, tem o peso mais expressivo na definição do valor das mercadorias. Quanto mais opressão e exploração sobre o trabalho, menor será o preço da mercadoria por ele fabricada, em uma relação inversamente proporcional.
O custo baixo de produtos e serviços frente à concorrência capitalista embute ou esconde necessariamente a precarização das condições de trabalho.
Nada que não possa haver, por outro lado, trabalho precário extremo empregado para a produção de mercadorias vendidas por alto custo, diante do reconhecimento adquirido pelas marcas nacionais ou internacionais, da publicidade exacerbada em torno da coisa e de todo o capital imaterial impregnado no valor do objeto.
A trabalhadora que quiser reverter a situação jurídica sem direitos do trabalho, somente o faz, por via de regra, depois do término da relação de trabalho, mediante o ajuizamento de ação na Justiça do Trabalho.
Faltam pesquisas sobre o assunto para mensurar o grau de êxito ou insucesso da parte trabalhadora que vai ao Poder Judiciário para obter o reconhecimento da relação de emprego.
Existem, sim, dados nas páginas eletrônicas dos Tribunais do Trabalho que precisariam ser avaliados com profundidade e de modo crítico, não podendo ser lidos ou interpretados sem o exame dos contextos retratados nos próprios autos de cada demanda.
Os dados a seguir apresentados mostram que o Brasil caminha para se consagrar definitivamente na qualidade de país da gente trabalhadora sem direitos do trabalho.
Menos de um terço da força de trabalho no Brasil encontra-se regulada.
Cuida-se de dado alarmante.
Difundem-se medidas, porém, tendentes ao aprofundamento das práticas “uberistas” ou de “imunidade trabalhista legal” para reduzir ainda mais a formalidade laboral, como vimos nos tópicos antecedentes.
O Brasil é um país com população projetada pelo IBGE, para o ano 2019, de 210.147.012 pessoas[4], cuja força de trabalho, no mesmo ano, era de 105,2 milhões de pessoas[5], tendo menos de um terço desse contingente protegido direta ou formalmente pela legislação trabalhista, com remuneração mensal média auferida pela classe trabalhadora em patamar muito abaixo dos padrões observados em outros países.
Apesar da informalidade que marca historicamente o mercado de trabalho no Brasil, entre os anos 2008 e 2010, como ponto fora da curva, houve crescimento qualificado por economistas como de elevada formalização laboral. O ritmo depois diminuiu, até alcançar, em 2014, um número próximo de 37 milhões de Carteiras de Trabalho anotadas.[6]
A crise econômica aguçada em 2014, a crise política iniciada em 2015, a radicalização das medidas governamentais contra a formalidade trabalhista, com especial destaque para a contrarreforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.429/2017 e Lei nº 13.467/2017), que cuidou exclusivamente de exterminar direitos do trabalho, além de medidas provisórias editadas entre os anos de 2019 e 2020, contribuíram significativamente para o aumento da informalidade.
A solução do neoliberalismo para enfrentar as crises geradas pelos seus efeitos mais drásticos, notadamente no Brasil, tem sido o aprofundamento das medidas de corte liberal, capaz de provocar verdadeira compulsão pela desregulação do mercado de trabalho.
Tendo o país alcançado 36,61 milhões de Carteiras de Trabalho assinadas em 2014, número ainda reduzido frente à ocupação de quase 100 milhões de pessoas, registre-se, o quadro se agravou demais desde então.
Até o final de abril de 2020 existiam apenas 32,2 milhões de trabalhadores cujas CTPS estavam anotadas pelo setor privado, com 10 milhões desses contratos de trabalho suspensos ou salários reduzidos (25%,50% ou 75%), por força das medidas adotadas em tempos da pandemia do coronavírus, tendo o Poder Executivo a expectativa de que tal número possa chegar a 24,5 milhões de contratos de trabalho suspensos ou com redução salarial[7].
Com a crise econômica agravada pela pandemia(Covid-19),devemos ter perdido, até julho de 2020, mais alguns milhares senão milhões daqueles 32,2 milhões de postos formais celetistas existentes no mês de abril de 2020.
Existiam 12,9 milhões de trabalhadores desempregados no Brasil até o mês de abril de 2020.[8]
Na mais absoluta informalidade encontravam-se, até março de 2020, 36,8 milhões de trabalhadores. Os desalentados eram 4,8 milhões de pessoas[9].
Não custa destacar que a média salarial dos trabalhadores formais no país – pouco mais de 32 milhões – era, em 2019, de R$ 2.291,00.[10]
Uma radiografia sintética, em suma, nos revela o seguinte quadro geral da formalização/informalidade no Brasil, entre os anos 2019 e 2020:
População estimada pelo IBGE – 2019
210.147.012 milhões
Força de trabalho – 2019
105,2 milhões
Contratos de trabalho formalizados pela CLT – até abr. 2020
32,2 milhões
Média remuneratória mensal dos empregados formais celetistas – até mar. 2020
R$ 2.291,00
Informais e sem direitos do trabalho – até mar. 2020
36,8 milhões
Desempregados – até abr. 2020
12,9 milhões
Desalentados – até mar. 2020
4,8 milhões
Outros e os por conta própria 2019/2020
18,5 milhões
Qualquer resposta adequada à crise econômica e ao desalento social vivido no Brasil passa necessariamente pela absorção ao mercado formal dos milhões de informais, desempregados e desalentados, contingente equivalente a dois terços da força de trabalho, com o reconhecimento de direitos sociais constitucionais a todos eles, na condição de empregados.
Nesse cenário, razão assiste aos entregadores e aos motoristas de aplicativos e plataformas eletrônicas, com a sua bandeira principal de luta(condições dignas de labor) exposta na paralisação de julho de 2020, todos eles submetidos ao método selvagem de trabalho uberista. Reivindicaram e reivindicam, portanto, o reconhecimento da condição de empregados celetistas, inclusive por intermédio da aprovação de lei federal sob tal diretriz jurídica, considerando que o Judiciário, não obstante algumas decisões de vanguarda afinadas com o Direito do Trabalho, não foi capaz de dar resposta à demanda legítima de trabalhadores explorados em nível ultrajante e vergonhoso, no Brasil e no mundo.
A fórmula apresentada pelo mercado e por seus agentes, todavia, é na direção única de sufocar ainda mais o outro terço da força laboral, remetendo muitos dos 32,2 milhões de empregados formais para a informalidade ou, no mínimo, retirando-lhes direitos continuamente, como tem acontecido no Brasil nos últimos anos.
São 32,2 milhões de pessoas cuja remuneração média mensal resulta aproximadamente em dois salários mínimos, com um grande contingente desse quantitativo já terceirizado(forma bruta e escancarada de precarização laboral) ou igualmente submetido a outras formas de trabalho precário, situação definida por Giovanni Alves como precarização salarial regulada[11].
Trabalhadoras e trabalhadores submetidos à contínua retirada de direitos sociais por leis, medidas provisórias, decisões judiciais as quais respaldam a terceirização generalizada em todas as atividades empresariais, a prevalência do negociado sobre o legislado e tantas outras medidas restritivas de garantias fundamentais à vida digna, estão, por incrível que pareça, ameaçados de largar o bloco restrito da formalidade para o ingresso no grande cordão da informalidade.
Não há limites para desatinos.
É que não faltam propostas e ações tendentes a destroçar ainda mais o mercado de trabalho no Brasil, com a fuga total dos direitos sociais assegurados à classe trabalhadora pelo art. 7º da Constituição da República e, finalmente, com a fuga da regência da CLT.
Parecem querer retornar às primeiras décadas do século XX, ao tempo da máxima exploração do trabalho humano, época de um país miseravelmente pobre (a imensa maioria de sua gente) e atrasado.
Se assim o for, desde que não exista luta social suficiente para manter o Estado Democrático de Direito, a Constituição de 1988 e a CLT, brevemente teremos um número bastante reduzido de trabalhadoras e trabalhadores formais no Brasil, cujas consequências serão drásticas para o projeto de nação até hoje não implementado, ao menos sob os marcos da democracia substancial para a imensa maioria de sua população.
Será a lei da selva do mercado de volta com toda a força.
E na lei impiedosa do mercado (des)regulando todas as relações sociais, inegavelmente, as instituições públicas e privadas de proteção ao trabalho perdem sentido, porque não existirá campo para a sua atuação.
O mercado livre resolve tudo, até mesmo acabar com o trabalho regulado e as instituições que existem exclusivamente para protegê-lo.
A Previdência Social, esgarçada pelas contrarreformas trabalhistas e previdenciárias promovidas pelos Poderes da República, sucumbirá definitivamente com o aumento do quadro de informalidade no Brasil.
As aposentadorias e outros benefícios previdenciários ficarão, em breve, indelevelmente ameaçados.
Outros recursos sociais, incluindo os impostos, serão por demais escassos com a ordem política vocacionada a eliminar o trabalho regulado no Brasil.
As políticas públicas minguarão ainda mais, ano a ano.
É necessário ter em mente que a economia de uma nação capitalista se alimenta e retroalimenta por intermédio de diversas ações fundamentais para conseguir obter qualquer nível razoável de pujança e justiça social.
Toda vez que o mercado de trabalho for frágil, informal, desregulado, estrangulado, cuja retribuição ao trabalho humano se realizar em patamares reduzidos, o conjunto da sociedade será profundamente afetado.
A opção pela ausência de Direito do Trabalho, Seguridade Social, Educação e Saúde Públicas pode ser útil a uma minoria que, além de proprietária de outras atividades econômicas, vive primordialmente do rentismo obtido no mercado financeiro, pedra angular na atualidade dos movimentos empreendidos pelo sistema capitalista de produção.
Todo grande capitalista moderno é, por via de regra, antes de tudo um financista. Não precisa ser necessariamente dono do banco para realizar os seus negócios no mercado financeiro, nem isso implica o encerramento de todas as atividades empresariais fora do rentismo.
Algumas pistas foram dadas nos últimos anos do desejo incontido do mercado de demolir o Direito do Trabalho, as instituições democráticas e o próprio serviço público.
O poder público federal foi severamente afetado pela aprovação da PEC do teto dos gastos, depois transformada em Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. O regime fiscal ali definido compromete a educação, a saúde, o trabalho e outros direitos sociais, além de inviabilizar a realização de concursos públicos nas próximas décadas, no âmbito dos três Poderes da República, salvo para preencher uma ou outra vaga oriunda de exoneração de servidor público, considerando que as vagas decorrentes de aposentadoria ou capazes de gerar o pagamento de pensão não podem ser providas, tudo em nome teto fiscal do serviço público.
Do final de 2016 a junho de 2020, ou seja, com menos de quatro anos de vigência da EC 95/2016, contam-se milhares de cargos públicos vagos existentes na esfera federal, os quais não podem ser providos, o que acarretará em um futuro próximo no esgotamento da máquina pública.
Sem as servidoras e os servidores qualificados, não há serviço público que funcione adequadamente ou resista a essa tormenta política de dilapidação de pessoal, sendo certo que parte de tal contingente será substituído, inexoravelmente, aliás, como tem ocorrido nos últimos anos, por mão de obra precária, de custo baixo, além de trazer consigo, para ocupações de maior qualificação técnica, todos os problemas que a Constituição de 1988 tentou superar (art. 37).
Mas ainda há campo a ser percorrido para quem pretende chegar rapidamente ao século XIX.
O que sobrará?
Se não houver esforço desmedido para cumprir a Constituição da República e o Estado Democrático de Direito, consigne-se, ficarão apenas as cinzas de uma sociedade que outrora a sua classe dominante projetou integrar a auspiciosa modernidade burguesa mundial.
Haverá, ao final, uma caricatura de embrionária civilização do modo ocidental capitalista avançado, cujos direitos sociais jamais se concretizaram de forma plena em terras brasileiras.
O museu da incipiente modernidade brasileira de relações sociais estará pronto para receber as obras de arte construídas com sangue, suor e lágrimas no século XX, até o dia no qual a luta e a arte se rebelarem novamente para proclamar que o século da afirmação sem tréguas dos Direitos Humanos não tolera retrocessos de natureza social ou civilizacional.
Notas:
REFERÊNCIAS
ALVES, Giovanni. Trabalho e cinema. O mundo do trabalho através do cinema: “o homem que virou suco”. Bauru: Práxis, 2014.
[1] ANTUNES,Ricardo. Como se trama a uberização total.Disponível em:https://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-se-trama-a-uberizacao-total-por-ricardo-antunes/. Acesso em: 11 jun. 2020.
[2] RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 1993, p. 217.
[3] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: DIFEL Difusão Editorial/Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 9-10.
Artigo de autoria do Juiz do Trabalho Rubens Curado Silveira, titular da 11a Vara do Trabalho de Brasília. Já foi Conselheiro do CNJ e secretário-geral do CNJ.
Neste domingo (14) o Conselho Nacional de Justiça – CNJ completa 15 anos de instalação. No auge da sua juventude, carrega uma história de vários acertos e avanços, permeados por alguns desacertos e retrocessos.
O saldo é altamente positivo: profissionalização da gestão, incentivo ao uso de tecnologias (inclusive do processo eletrônico), maior transparência, responsabilidade orçamentária e atenção ao primeiro grau são exemplos de políticas públicas implementadas pelo Conselho e que contribuíram para a inserção definitiva do tribunais brasileiros no terceiro milênio.
Ao debutar perante a sociedade, o CNJ presenteia a comunidade jurídica com uma controvertida decisão: o reconhecimento do “poder” (quiçá absoluto) do advogado do réu para, por ato unilateral, suspender prazos processuais.
Refiro-me à decisão proferida pelo Plenário do CNJ em 26 de maio último, no Pedido de Providências nº 0003594-51.2020.2.00.0000, que ao conferir “interpretação autêntica” ao art. 3º, § 3º , da Resolução CNJ n. 314/2020 (3), chegou à seguinte conclusão:
Diante do exposto, julgo parcialmente procedente o pedido, para esclarecer que a suspensão dos prazos prevista no § 3º do art. 3º da Resolução CNJ n. 314/2020, nos casos ali elencados, não depende de prévia decisão do juiz, bastando a informação do advogado, durante a fluência do prazo, sobre a impossibilidade da prática do ato. Nos outros casos, a suspensão deverá ser determinada pelo juiz (§ 2ª).
Vale transcrever trecho do voto em questão, quando faz referência à “presunção de veracidade” da afirmação do advogado peticionante:
“Nas reuniões do referido Comitê, do qual participo, defendi justamente a posição de que se o advogado alegasse a impossibilidade de cumprir os prazos processuais, independentemente de qualquer prova, diante da situação excepcional pela qual todos passam, haveria presunção de veracidade dessa alegação e o juiz deveria suspender os prazos processuais em cada processo em que houvesse a alegação.
Porém, o desembargador e secretário-geral desse Conselho, Dr. Carlos Adamek, também integrante do Comitê, apresentou proposta mais restritiva: de que apenas em algumas situações, em que se presume a necessidade de prévio contato do advogado com a parte ou de algum tipo de deslocamento, para a prática de determinados atos processuais, bastaria a mera alegação do advogado.
Foi exatamente o que prevaleceu nas discussões do Comitê, e o que foi incorporado ao § 3º do art. 3º da Resolução 314/2020: o prazo para “apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos” pode ser suspenso diante da impossibilidade de sua prática, se informada durante a sua fluência, bastando, para isso, a alegação da parte ou do advogado. Então, nos casos previstos no dispositivo, basta a alegação do advogado, ainda que desacompanhado de qualquer prova, por se tratar de casos em que normalmente é necessário contato entre o advogado e a parte para obter informações mais detalhadas sobre os fatos, obter documentos etc.”.
Não se deve perder de vista que tal decisão foi proferida no contexto excepcional e emergencial da pandemia da Covid-19, motivador da edição das Resoluções 313 e 314 no intuito de regular “o regime de Plantão Extraordinário” do Poder Judiciário Nacional, uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à justiça neste período emergencial.
A excepcionalidade do momento, contudo, não justifica eventuais excessos.
São evidentes os incômodos causados à magistratura nacional por, pelo menos, duas controvérsias jurídicas que emergiram dessa decisão:
1) teria o CNJ ultrapassado os limites da sua competência constitucional/administrativa para, invadindo a esfera jurisdicional, “legislar” sobre tema processual?
2) a suspensão automática do prazo (pela mera juntada de petição) está isenta do contraditório e do controle jurisdicional posterior? Ou é mera presunção relativa que pode ser elidida e, por conseguinte, revista pelo magistrado condutor do processo?
Quanto à primeira, o nítido caráter processual da referida decisão, a afetar o dia a dia de cada um dos processos judiciais em trâmite no país, evidencia extrapolação da competência constitucional precípua do Conselho, de controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário (CF, art. 103-B, § 4º).
Uma coisa é padronizar o funcionamento dos órgãos da Justiça no período da pandemia (fechamento dos foros, suspensão do atendimento presencial etc.), medidas administrativas que, por impossibilitar ou dificultar o acesso aos tribunais, impõem a suspensão dos prazos processuais. Em outras palavras, um ato de gestão administrativa com repercussão (acessória) na esfera jurisdicional.
Outra coisa, bem diversa, é instituir uma suspensão automática de prazo (pelo mero peticionamento), inédita no sistema processual brasileiro, e ainda definir as situações específicas da sua aplicação (contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares e ”outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova”).
A segunda questão jurídica diz respeito ao alcance da decisão proferida. Ficou clara a suspensão automática do prazo, decorrente da reconhecida presunção de veracidade da afirmação do advogado peticionante. A dúvida consiste em saber se tal presunção é absoluta ou relativa, já que os efeitos decorrentes serão totalmente distintos.
Em se tratando de presunção absoluta (juris et de jure), não cabem argumentos ou provas em contrário, o tema fica isento do controle pelo juiz condutor do processo e o prazo permanece irremediavelmente suspenso até o fim da pandemia (ou até que o peticionante manifeste a possibilidade de prática do ato).
Caso se trate de presunção relativa (juris tantum), a afirmação do advogado está sujeita ao contraditório e posterior controle judicial. Logo, na hipótese de o magistrado entender elidida a presunção de veracidade, por decisão fundamentada, o prazo suspenso retoma o seu curso.
Preocupa-me a percepção de que parte da advocacia, da magistratura e das Corregedorias vêm conferindo a apressada interpretação de que houve reconhecimento de “presunção absoluta” à afirmação do advogado peticionante. É preciso cautela para não acrescentar palavras não ditas pelo Plenário do Conselho.
A decisão do CNJ afirma que a suspensão “não depende de prévia decisão do juiz”. Mas em momento algum exclui a possibilidade do contraditório e do controle judicial a posteriori.
E nem poderia. No sistema processual vigente, nenhuma matéria está imune ao contraditório. E nenhuma controvérsia está isenta da emissão do entendimento do juiz condutor do processo. Trata-se de regra básica do devido processo legal.
Entendimento diverso quebraria a dialética processual e a necessária paridade de forças das partes (CPC, art. 7º), conferindo ao advogado peticionante (via de regra representante do réu) o “poder” de suspender unilateralmente o prazo e, assim, protelar o processo por significativo período de tempo.
Mais. Livre do contraditório e do controle judicial, a tese da presunção absoluta escancara as portas ao abuso de direito. Para ficar em um único exemplo, não faz sentido a suspensão do prazo de defesa em processos corriqueiros/repetitivos que envolvam matéria exclusivamente de direito. Mas a vingar a interpretação absolutista, restaria ao advogado do autor e ao magistrado conformar-se com o papel de observadores passivos de uma decisão monocrática e irrecorrível do representante de quem, via de regra, não tem interesse na solução célere do processo.
Seria uma ofensa, às escâncaras, à inafastabilidade da jurisdição (CF, Art. 5º, XXXV), além de interferência à independência judicial do magistrado. Pior: advindas de um órgão com atuação restrita à esfera administrativa.
Em síntese, o absolutismo advocatício, além de não encontrar respaldo na literalidade da decisão do Conselho, inova o direito processual, quebra a dialética e a paridade de “armas” das partes processuais, incentiva o abuso de direito, exclui a controvérsia da apreciação do magistrado condutor e, em última análise, contraria princípios básicos do devido processo legal e da Constituição.
Repita-se: não me parece ter sido essa a intenção do CNJ. Mas as controvérsias que já se apresentam em todo o país evidenciam a necessidade de esclarecimentos, a fim de colocar o tema no trilho da constitucionalidade.
No marco dos seus 15 anos, a magistratura aguarda, ansiosa, o posicionamento do Conselho Nacional de Justiça, na expectativa de que não se consolide um retrocesso.
—-
(1) O autor foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça no biênio 2013/2015 e Secretário-Geral do CNJ no período 2009/2010. É Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB.
(2) A excessiva concentração de “poder” na Presidência pode ser destacada dentre os desacertos estruturais do CNJ, tornando-o demasiadamente dependente do perfil e da “afeição” do titular dessa cadeira.
Dentre os retrocessos, merecem destaque: a restrição ao acesso à remuneração de magistrados e servidores na regulamentação da LAI e a revogação do dispositivo do Regimento interno que estabelecia“quarentena” aos Conselheiros.
(3) Art. 3º, §3º, da Res. CNJ 314: “Os prazos processuais para apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos, somente serão suspensos, se, durante a sua fluência, a parte informar ao juízo competente a impossibilidade de prática do ato, o prazo será considerado suspenso na data do protocolo da petição com essa informação”.
A divulgação da proibição por Lei do trabalho infantil e de seus malefícios é matéria-prima para o seu combate. Com companhas na mídia, têm-se a conscientização e as denúncias. Quando divulgamos que o trabalho infantil é proibido por Lei e que suas consequências são, por vezes, irreversíveis na vida da criança e do adolescente — como no caso de acidente de trabalho, com mutilação e perda membros — aquele que promove o trabalho infantil sente-se observado, vigiado. Além disso, quem presencia o trabalho infantil está sujeito a conscientizar-se e sente-se mais apto e fortalecido para denunciar.
Por isso, o Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do Tribunal Superior do Trabalho, do qual sou Gestora Regional, em Santa Catarina, tem, como uma de suas ações, a divulgação da proibição do trabalho infantil e de seus efeitos maléficos. Quanto mais ampla for a divulgação, a ponto de ser alcançado um número maior de pessoas, melhor e maior será o efeito da missão de combater o trabalho infantil.
Dia 12 de junho é o destacado para mundialmente ser recordado o combate ao trabalho infantil como forma de permanente lembrança dessa importante missão que a todos compete, sem prejuízo da luta diária que deve ser travada. O Brasil firmou o compromisso de erradicar as piores formas de trabalho infantil até 2020 e está alinhado com a meta de erradicação integral até 2025. Trata-se, sem dúvida, de um objetivo arrojado, ainda mais em tempos de pandemia.
São 1,8 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, segundo estudo oficial do IBGE, sem considerar o número de 700 mil que realizam trabalho na produção para o próprio consumo, no cuidados de pessoas, ou em afazeres domésticos, o que, também, configura trabalho infantil, sem dúvida.
Somados os números, temos 2,5 milhões de crianças e adolescentes trabalhando. Na pandemia, as consequências para crianças e adolescentes vão muito além das questões de ordem econômica, gerando impactos que poderão comprometer, danificar de forma definitiva e duradoura o futuro delas e de todos nós. As experiências crises de saúde e sanitárias anteriores — não tão graves como a pandemia do coronavírus — demonstraram que as crianças e os adolescentes são as que correm o maior risco de exploração no âmbito do trabalho, inclusive sexual, e de abuso de forma geral, porque deixam de ir à escola, interrompendo o seu contato com professores, com serviços sociais e com a rede de proteção.
O distanciamento social decorrente da pandemia ocasiona a proximidade, com maior frequência, entre vítima e explorador, ou agressor. A presença contínua da criança e do adolescente em casa torna-os mais vulneráveis e suscetíveis à exploração e à agressão. A paralisação da atividade escolar, em conjunto com a maior aproximação com aquele que explora e agride, ocasiona maior vulnerabilidade às crianças e aos adolescentes. O trabalho infantil, em tempos de pandemia, torna-se, por vezes, uma necessidade para as famílias, em razão do desemprego e da grave crise econômica. A exploração sexual, uma das piores formas de trabalho infantil, em razão da falta de conscientização, da pobreza, aliadas à necessidade mais latente decorrente da crise do coronavírus, é meio de sobrevivência para muitos em todo este País.
De grande atrocidade é a situação de meninas que casam com homens com mais de 50 anos, sendo uma forma de exploração sexual disfarçada em um relacionamento. Segundo o Unicef, em 2019, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking mundial de casamentos infantis, assim considerados os ocorridos antes dos 18 anos. Não só as crianças e adolescentes das classes mais vulneráveis estão suscetíveis à exploração e ao abuso, mas também as que estão em casa, de classe média, no famoso e atual sistema de homeschoooling, com pais ocupados e muito preocupados com a manutenção de suas fontes renda, estão, com o uso da tecnologia digital, sujeitos ao abuso, à violência e à pornografia.
A situação é de extrema gravidade. Faz-se necessária, urgentemente, uma ação conjunta, sob pena de a pandemia — crise da saúde e sanitária — torna-se, historicamente, a negação completa e absoluta a direitos da criança e do adolescente. Precisamos do trabalho do governo e da sociedade civil, para mantermos a integridade física, moral e psíquica de crianças e de adolescentes. O trabalho em defesa das crianças e dos adolescentes envolve ações do governo, garantindo aos trabalhadores e às empresas meios dignos de ultrapassarem a crise, com a concessão de recursos, isenção e redução de impostos, garantias de salário e de emprego. Envolve, também, ações humanitárias da sociedade civil, o que, aliá, se vê muito presente nos dias de hoje.
Ficarmos inertes representará o fim da dignidade de crianças e de adolescentes e de seu futuro. E, para você que está, aí, sentado, confortável na sua casa, lendo esse texto, pensando que ele não te atinge, porque seu filho de 12 anos está seguro e você tem meios financeiros de garantir-lhe sucesso, pense, dentro do seu egoísmo e da sua parca visão de mundo, que o futuro de seu filho e de outros filhos de outras mães e outros pais poderá, infelizmente, não chegar, pois existem inúmeros fatores que certamente advirão da falta de dignidade que atingirá crianças e adolescentes e que poderão interromper esse caminhar natural.
Então, juntos, ajamos para que os impactos ocultos da pandemia em nossas crianças e em nossos adolescentes não comprometam de forma definitiva o nosso planeta. E como agir? Conscientizando todos que estão a nosso volta e denunciando. Sejamos a voz daqueles que, ainda, não a tem, para que, um dia, possam tê-la de forma plena.
O dilema sobre o papel do Estado quando se trata do pacto social e de um desenvolvimento sustentável e inclusivo parece mais latente nos tempos atuais. O Decreto-legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconhece o estado de calamidade pública, instituindo comissão mista do Congresso Nacional com o objetivo “de acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19)”. Mesmo antes da pandemia, o campo especializado do trabalho sempre esteve marcado pela singularidade do regime da pluralidade e do diálogo entre fontes normativas.
Num primeiro plano, há a centralidade dos direitos fundamentais, como inovação constitucional desde 1988, representada pelo seu Título II. Assim, no campo do trabalho, qualquer legislação que atenda a livre iniciativa deve conjugá-la, necessariamente, com o valor social do trabalho, o que desafia uma postura interpretativa permanente. O diferencial trabalhista na presença marcante e valorizada de regras provindas de fonte privada, em contraposição à clássica fonte estatal, também é ponto de destaque. De fato, não se nega a importância das normas de produção autônoma como autodisciplinamento das condições de vida e de trabalho pelos próprios interessados. Há, em suma, válida e legítima concorrência entre o Direito do Estado e o dos grupos sociais. Além disso, o chamado “direito comum” é fonte subsidiária para o Direito do Trabalho (art. 8º da CLT). Tudo isso orientado pelo princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, que vigora normativamente incidindo sobre o campo das relações de trabalho, assim como o do primado da dignidade da pessoa trabalhadora.
Esse, que é um panorama mais geral, recebeu colorido especial nos últimos anos. Depois de longa tramitação no Congresso Nacional, sobrevieram o Código Civil de 2002 e o Código de Processo Civil de 2015. A “Reforma Trabalhista”, perpetrada com a edição da Lei 13.367/2017, que alterou de forma drástica o Direito material e Processual do trabalho, teve uma tramitação recorde no Congresso Nacional, reforma esta que modficiou inúmeros dispositivos da CLT e demais legislações ordinárias. Todas essas mudanças desafiam o crivo da constitucionalidade e da compatibilidade e observância, também, das normas internacionais do trabalho.
No entanto, em que pese a abrangência de todas as mudanças perpetradas, o movimento parece não cessar, considerando o número crescente de projetos legislativos, em tramitação, buscando a alteração de normas que impactam o mundo do trabalho, e muitos deles sem nenhum compromisso com a expansão ou incremento das previsões da Constituição da República.
No ano de 2018 foram propostos 70 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e 40 Projetos de Lei do Senado no Senado Federal. Já em 2019 foram propostos 168 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e 56 Projetos de Lei no Senado Federal e editadas 3 Medidas Provisórias. Nos primeiros quatro meses de 2020 foram propostos 85 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados e editadas 3 Medidas Provisórias. Já em relação as normas referentes ao enfrentamento da Pandemia da Covid19, até o momento, já foram propostos mais de 150 Projetos de Lei tratando de normas referentes aos contratos de trabalho e editadas 4 Medidas Provisórias. Profusão de medidas legislativas nem sempre representam indicativos de segurança jurídica ou de estabilidade das relações contratuais, muito pelo contrário.
Esses dados demonstram o alto nível de exigência endereçado à magistratura especializada do trabalho. Isso não ocorre com nenhum outro ramo do Judiciário porque não se trata de mera atualização ou de necessidade permanente de aperfeiçoamento legislativo. A profusão de propostas e de textos aprovados sempre exigirão o contexto de interpretação normativa. A centralidade do trabalho na vida das pessoas parece se traduzir na centralidade das atenções legislativas sobre o mundo do trabalho, e nem sempre no sentido de incremento da proteção social.
Magistrados e magistradas do trabalho veem-se na permanente obrigação de readequação, de modificação dos seus julgamentos, de acordo com as novas legislações aprovadas pelo Congresso Nacional, e, até mesmo, de definição de argumentos jurídicos para a não aplicação de determinados dispositivos, seja pelo controle difuso de constitucionalidade, seja pelas violações perpetradas a normas internacionais (como é o caso recorrente das Convenções nº 98 e 155 da OIT). Entre legislação e jurisdição, o fluxo excessivo indica que o que está em jogo é o próprio avanço dos direitos fundamentais no campo econômico-social-trabalhista que o Texto de 1988 representou.
Além desses desafios, os retornos pontuais, de tempos em tempos, de discursos públicos contra o Poder Judiciário trabalhista desnudam um ambiente de incerteza e de insegurança institucional, não apenas para os integrantes do sistema de justiça laboral, mas, também, para os próprios cidadãos. A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário da União, com a delimitação da sua competência, conforme disposição contida nos arts. 111 e 114 da Constituição. Indiscutível a sua produtividade e resposta aos jurisdicionados, conforme números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), impondo a conclusão de que as críticas que lhe são dirigidas se embasam na sua produtividade e não na sua inércia.
Em tempos de pandemia, o Judiciário trabalhista, mais uma vez, demonstra a sua efetividade funcionando remotamente. A divulgação da produtividade dos seus magistrados e magistradas encontra-se nos portais dos Tribunais Regionais, com registro de que foram destinados mais de R$ 200 milhões obtidos por acordos extrajudiciais, decisões e ações coletivas e Termos de Ajustes de Conduta para ações de combate ao coronavírus e com a finalidade de atendimento das pessoas em faixas de vulnerabilidade. A Escola Nacional da Magistratura do Trabalho – ENAMAT e as Escolas Regionais têm disponibilizados diversos cursos à distância, capacitando os magistrados e as magistradas, auxiliando na compreensão e aplicação dessas novas legislações que seguem em ritmo alucinante.
A era democrática inaugurada em 1988 trouxe para a cena pública a questão do trabalho como uma questão de direitos fundamentais. Isso não seria apenas um dado; teria que ser um construto. Como era esperado, e se intensifica de tempos em tempos, seguem as disputas políticas e jurídicas em torno do direito ao trabalho como direito fundamental. E, nesta toada, no epicentro do sistema do direito, encontra-se a presença de uma magistratura especializada que tem se mostrado apta a dar as respostas constitucionais para esses tempos.
Nos primeiros dias de 2020, o mundo soube do surto endêmico de uma nova forma de coronavírus – o SARS-CoV-2 –, à altura restrito à cidade de Wuhan, capital da província da China central, entrecortada pelos rios Yangtzé e Han. Ao contrário de seus análogos já conhecidos (a SARS e a MERS, p. ex.1), a doença provocada pelo SARS-Cov-2 – conhecida como covid-19 – tinha por características sintomáticas a manifestação mais intensa e duradoura de coriza, febre, diarreia, vômito, falta de apetite, perda do olfato e do paladar, aguda dificuldade respiratória e dores no corpo que poderiam evoluir para um quadro de pneumonia grave.
Desde a fase epidêmica, combater o avanço da síndrome se tornou a preocupação prioritária da Organização Mundial da Saúde, que logo a classificou como “emergência de saúde pública de importância internacional” (= “public health emergency of international concern”, ou PHEIC), no mais elevado nível de alerta do Regulamento Sanitário Internacional. Na dicção de Tedros Adhanom Ghebreyesus (diretor-geral da OMS) e de Roberto Azevêdo (diretor-geral da OMC),
[o] objetivo do Regulamento Sanitário Internacional é prevenir, proteger contra, controlar e proporcionar uma resposta de saúde pública à disseminação internacional de doenças de modo proporcional aos riscos à saúde pública, com vista a minimizar a interferência no tráfego e no comércio internacionais. As regras da OMC fornecem aos governos as flexibilidades necessárias para enfrentar situações de escassez de suprimentos médicos essenciais e/ou desafios de saúde pública. No entanto, qualquer medida tomada para promover a saúde pública deve ser "direcionada, proporcional, transparente e temporária", em consonância com os recentes apelos dos líderes mundiais. Os governos devem evitar medidas que possam interromper as cadeias de fornecimento e impactar negativamente as pessoas mais pobres e vulneráveis, notadamentee em países em desenvolvimento e menos desenvolvidos que são tipicamente dependentes de importações de medicamentos e equipamentos médicos.2
A sigla covid-19 combina a expressão anglófona “Coronavirus disease” com o ano de surgimento da moléstia (2019). Nas semanas e meses seguintes, o surto ganharia o status de epidemia, atingindo as demais metrópoles chinesas e extrapolando as fronteiras daquele País em direção ao Japão e à Coreia do Sul para, então, se dispersar por todo o mundo, no embalo do frenético trânsito de pessoas e de bens a caracterizar a economia globalizada do século XXI. Em 11 de março de 2020, era reconhecida como uma pandemia: doença de alto poder de contágio, que se espalha velozmente ao longo das fronteiras nacionais, alcança vários Estados nacionais e tende à contaminação planetária.3
No final de fevereiro, após a covid-19 se propagar em solo europeu, foram registrados os primeiros casos no Brasil. No decorrer do mês de março, os doentes já eram contados aos milhares e os mortos às centenas, restando ao Ministério da Saúde reconhecer – e anunciar – a ocorrência de transmissão comunitária em todo o território nacional. Em termos epidemiológicos, tal estágio é caracterizado pela dispersão autônoma da doença em uma determinada região geográfica e pela impossibilidade de identificação e de controle a respeito de sua cadeia de contágio.4 No momento em que encerramos a redação deste artigo, o Brasil ultrapassa a marca dos catorze mil mortos pelo novo coronavírus (no mundo, somam-se mais de 302 mil óbitos).5
Artigo JOTA: Voltou a reforma da Previdência, agora “desidratada”
Artigo é assinado pelo presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, e o juiz do Trabalho Carlos Alberto Castro
Em artigo publicado no portal Jota nesta terça-feira (6/2), o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, e o juiz do Trabalho Carlos Alberto Pereira Castro alertam para as notícias que estão circulando atualmente sobre a possibilidade do governo produzir 'material didático sobre a reforma da Previdência para ser distribuído em toda a cadeia de varejo do país. […] A ideia é que o material fique disponível em grandes redes de farmácia e supermercados, por exemplo, e explique à população de forma clara a necessidade das mudanças nas regras de aposentadoria”. (“Painel” Folha de S. Paulo de 15.1.2018).
"Parte-se, pois, do pressuposto de que as mudanças propostas pelo Governo, como propostas, são “necessárias”. Na semana anterior, noticiava-se possível ajuste entre o Governo e a Google para que, nas próprias “procuras” virtuais, a ferramenta de mesmo nome priorizasse notícias “positivas” sobre o tema", destacam os magistrados. Confira abaixo a íntegra do artigo. Clique aqui e acesse no site do Jota.
Voltou a reforma da Previdência, agora “desidratada”
ê-se na Folha de S. Paulo de 15.1.2018, no “Painel”, de Daniela Lima, que “[o] ministro das Cidades, Alexandre Baldy, propôs ao colega Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência) que o governo elabore um material didático sobre a reforma da Previdência para ser distribuído em toda a cadeia de varejo do país. […] A ideia é que o material fique disponível em grandes redes de farmácia e supermercados, por exemplo, e explique à população de forma clara a necessidade das mudanças nas regras de aposentadoria”. Parte-se, pois, do pressuposto de que as mudanças propostas pelo Governo, como propostas, são “necessárias”. Na semana anterior, noticiava-se possível ajuste entre o Governo e a Google para que, nas próprias “procuras” virtuais, a ferramenta de mesmo nome priorizasse notícias “positivas” sobre o tema.
Foi ABHIJIT NASKAR ─ conhecido neurocientista indiano, tanto pelos seus best sellers como pelo seu notório autodidatismo ─ quem disse, com especial propriedade, que “a verdade não precisa de publicidade; a mentira, sim” (“Truth does not need publicity, lies do”[1]). No caso da PEC n. 287/2016, caro leitor, tanto esforço de “esclarecimento” não atrai sinceras suspeitas?
Vejamos se, afinal, a “nova” reforma da Previdência, como proposta na versão “desidratada” do relator Deputado Arthur Maia, é realmente tão “boa” e “necessária”. Antes, porém, alguma digressão informativa, como é de praxe nesta coluna.
O ano de 2017 foi marcado pelo receio, instilado em parte da população, quanto às consequências para a economia brasileira caso a “Reforma da Previdência”, como proposta pelo atual Governo, não fosse aprovada. O principal argumento a alicerçar a PEC n. 287/2016 sempre foi aquele típico das políticas econômicas que flertam com a ideia de Estado mínimo: a contenção de gastas públicos e a necessidade de redução do déficit nas contas públicas.
Pois bem. Não é preciso ser expert em economia para saber que não há reforma previdenciária capaz de resolver o problema dos gastos públicos “ex abrupto” ─ ou, em bom vernáculo, “da noite para o dia”. A experiência demonstra que décadas se passam até que as mudanças neste campo acarretem efeitos palpáveis, notadamente porque o Executivo e o Legislativo não podem ─ mesmo que quisessem ─ extinguir direitos já adquiridos, inclusive no campo previdenciário, à vista do que dispõe o art. 5º, XXXVI, da Constituição (pelo qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”; e o Parlamento, ao exercer o poder constituinte derivado, não pode aprovar emendas constitucionais tendentes a abolir, “in genere” ou “in specie”, o direito adquirido, ante a sua condição de garantia individual, ut art. 60, § 4º, IV, CF[2]). Isto significa que, faça-se qualquer espécie de reforma, haverá sempre um “estoque” de benefícios que precisam ser honrados.
Por tantas razões, o Governo deveria se concentrar em outras alternativas muito palpáveis de recuperação do patrimônio da Seguridade Social, como, p. ex., na otimização da arrecadação ─ e, nomeadamente, em esforços concretos e estratégias inteligentes para cobrar dos milhares de sonegadores os bilhões de reais que escorrem pelos dedos da Fazenda nacional, ante a notória falta de apetite ─ na outra ponta das relações previdenciárias (a saber, a do custeio) ─ por parte de quem dá as ordens na casa. Dados do extinto Ministério do Trabalho e Previdência Social apontam que, apenas em 2015, foram perdidos nada menos que R$ 88,6 bilhões entre renúncias previdenciárias, sonegações fiscais previdenciárias e a mera inadimplência nas contribuições sociais[3]. Levantamentos do Governo Federal também revelavam, à altura, que, do total da dívida ativa da União, R$ 10,2 bilhões tinham alta probabilidade de recuperação e outros R$ 89,7 bilhões tinham chances medianas de recuperação. Por que não investir em mecanismos mais eficientes para essa recuperação, como, p. ex., políticas sérias de identificação e tratamento de grandes devedores da Previdência Social? Há poucos meses, p. ex., a CPI do Déficit da Previdência, presidida pelo Senador Paulo Paim e relatada pelo Senador Hélio José, apontava que apenas a JBS ─ aquela mesma do “tem de manter isso, hein?” ─ possuía débito acumulado de R$ 2,4 bilhões com os cofres da Previdência, de uma dívida total de cerca de R$ 500 bilhões[4]...
Não é, porém, o que se vê ou se faz. De modo totalmente contraditório, o ano de 2017 foi rico em benesses aos devedores da Previdência Social. Vejamos:
houve um novo REFIS ─ tradicional programa brasileiro de parcelamento e redução (drástica) de juros e multas (em até 99%!) ─, de tal modo que, graças às mudanças incluídas na Câmara dos Deputados e aprovadas pelo Chefe do Executivo, “a projeção do governo para chegar no déficit atual de R$ 139 bilhões será frustrada” (alerta feito, à altura, pelo Diretor da Dívida Ativa da Procuradoria da Fazenda Nacional em evento na FIESP[5]);
editou-se uma medida provisória para o perdão das dívidas do agronegócio (gerando perdas de 10 bilhões de reais, segundo dados da própria Receita Federal[6]);
editou-se, pouco depois, outra medida provisória para o perdão das dívidas de empresas optantes pelo SIMPLES, “beneficiando” 600 mil empresas[7].
Pois bem. A despeito de tanta frouxidão no custeio, o discurso oficial ─ e o da imprensa majoritária ─ não se despregou da obsessão pelos cortes e adiamentos de benefícios, impactando as camadas mais pobres da população, os assalariados e… os servidores públicos. Mais perto do fim de 2017, o Governo propôs uma “emenda aglutinativa” e passou a defender que a PEC n. 287/2016 visa a “combater os privilégios” dos que “ganham muito, trabalham pouco e se aposentam cedo”. O foco, portanto, passa os ocupantes de cargos públicos. Se não para outros efeitos, ao menos tentar conquistar a opinião pública (o que não fora possível fazer na primeira campanha de marketing ─ tanto que, ao final da campanha, os responsáveis foram de pronto “dispensados”).
Se, porém, voltarmos aos números, haveremos de perguntar: que privilegiados são esses?
O leitor deve ter parentes ou amigos ocupando cargos públicos, ou servidores já aposentados. Professores da rede pública de ensino; médicos ou demais profissionais do SUS; agentes das polícias federal, civil e guardas municipais; servidores nos mais diversos órgãos e ministérios da administração federal, dos Estados, dos municípios ou do Distrito Federal, ou ainda no Legislativo ou no Judiciário. Pois bem: o leitor considera algum desses parentes ou amigos grandes “privilegiados”? Encaixam-se, por acaso, no maldoso slogan do “trabalha pouco, ganha muito e se aposenta cedo”? Para o Governo Federal, a resposta é sim. Eles, servidores públicos, seriam os novos “vilões” da Previdência Social. Porque, na guerra que o Governo decidiu lutar, é preciso eleger bons inimigos. E insuflar, contra eles, a opinião pública e publicada. Porque, afinal, não será a sua popularidade, nem tampouco o seu capital político (já desbastado na contenção de duas denúncias-crime, contra o Sr. Presidente da República, que o STF encaminhou ao Parlamento), aquilo que lhe garantirá a aprovação da PEC n. 287/2016. Apostam, então, no ódio.
O trabalhador em geral ─ servidor público ou vinculado ao INSS, assalariado ou autônomo ─ decerto se pergunta: que delito pratiquei? Onde caminhei mal? E talvez lhe traga alguma revolta saber que a proposta só tem “olhos” para os trabalhadores (e, nessa segunda campanha de marketing, para os servidores públicos); não mira, em nenhum momento, a significativa parcela de devedores que não pagam seus impostos e contribuições, para a desgraça de todos nós, já que o desajuste das contas públicas não é um problema do atual Governo, mas do Estado brasileiro, e de toda a sociedade. Foi o que revelou, aliás, a Comissão Parlamentar de Inquérito que se instalou no Senado da República para examinar o propalado déficit da Previdência[8].
E nada disso tem sido suficientemente esclarecido. Ao revés, o que inunda diuturnamente os canais de rádio e televisão são campanhas de cooptação e/ou de desinformação. As mazelas da PEC n. 287/2016 ─ inclusive na versão “desidratada” ─ são solenemente esquecidas, porque o dinheiro público financia apenas uma das “versões” do problema. Vejamos, das mazelas, dois exemplos que valem para qualquer pessoa.
Os benefícios por incapacidade. A proposta, como está, tenciona “achatar” os benefícios por incapacidade, especialmente a aposentadoria por invalidez, que hoje é calculada em 100% da média de salários de contribuição, e ainda tem um adicional de 25% para casos mais graves (como nos casos de cegueira total e de tetraplegia). Com a PEC n. 287/2016, as aposentadorias por invalidez passarão a se chamar “aposentadorias por incapacidade permanente” e passarão a ser calculadas a 100% (integralidade) apenas quando os segurados se incapacitarem durante a atividade laboral (i.e., nas aposentadorias por invalidez acidentária); para os demais casos ─ mesmo diante de comprovada invalidez ─, as aposentadorias cairiam na fórmula geral de cálculo (originalmente, 51% da média mais 1% por ano de contribuição, e, na primeira redação proposta pelo Deputado Arthur Maia, 70% da média mais 1,5, 2,0 e 2,5% por ano de contribuição, sucessivamente). Como, porém, a ideia-força da reforma é fazer com que todos trabalhem até idades mais provectas, a quantidade dessas aposentadorias por invalidez tende a aumentar, com proventos menores. Pagar aposentadorias irrisórias a pessoas inválidas é “eliminar privilégios”?
A inacumulabilidade de aposentadorias e pensões. A regra mais vil, entretanto, é a que veda a acumulação de aposentadorias com pensões entre pessoas que viviam em união afetiva. Hoje, se uma pessoa recebe R$ 4.000,00 de aposentadoria e é casada ou vive em união com outra que recebe também uma aposentadoria de R$ 4.000,00, no caso de falecimento de uma delas, a pensão correspondente é paga ao cônjuge sobrevivente. Preserva-se em parte a renda familiar, até porque, de regra, seguem iguais os gastos principais (p. ex., com a alimentação, educação e saúde dos filhos comuns). Pela PEC n. 287/2016, porém, só irá receber pensão por viuvez aquele que recebe de aposentadoria valor inferior a dois salários mínimos; os demais deverão “optar” pela própria aposentadoria ou pela pensão do cônjuge falecido. Isso é “eliminar privilégios”?
Ademais, na última semana de 2017, acresceu-se ao novo “discurso” um elemento retórico: agora, a reforma é necessária para que não venha adiante a ser feita outra, mais “radical” (sugerindo-se, nas entrelinhas ─ ou até explicitamente ─, que, sem essa reforma, poderemos ter, adiante, a mutilação dos direitos adquiridos, com cortes nos valores atuais das aposentadorias e pensões já adquiridas). Mais terrorismo midiático.
O grande equívoco ─ e a crueldade capital ─ por detrás dessas campanhas está justamente em gerar um imenso clima de insegurança na população. Seria mais inteligente e palatável trabalhar com uma proposta de alteração das regras previdenciárias restrita aos novos segurados, de modo que as pessoas que viessem a ingressar no mercado de trabalho após a reforma se submetessem a um novo critério, razoavelmente escalonado, que combinasse idade mínima e tempo mínimo de contribuição. O que as últimas campanhas de mídia conseguiram promover, no entanto, foi uma corrida desenfreada às aposentadorias por quem, hoje, já preenche os requisitos constitucionais e legais, receando prejuízos a médio e longo prazos. Daí que, em março de 2017, houve um incremento de 36,5% nos pedidos de aposentadoria, em relação a 2016 . E tal percentual fez apenas aumentar desde então, graças à insistente propaganda – pagas com o escasso dinheiro público – de que a reforma viria a galope. O resultado? A curto prazo, maior gasto com aposentadorias. Como diz o vulgo, “tiro pela culatra”.
Vê-se que, afinal, sobrou ímpeto, mas faltou engenho. Se este Governo ─ ou qualquer outro ─ deseja de fato fazer uma reforma “radical”, mas socialmente responsável, deverá considerar três fatores (sem prejuízo de revisar regras de benefícios, mas com razoabilidade e efeitos “ex nunc”). São eles:
a) A Previdência não existe isoladamente no contexto social; ela influencia, por exemplo, a economia de diversos municípios, cuja principal fonte de renda advém dos benefícios do INSS e dos Regimes Próprios de Previdência Social; por outro lado, é influenciada por diversos fatores, como, notadamente:
(1) a indecorosa quantidade de pessoas trabalhando na informalidade e/ou sem contribuições para o sistema (o que tende a se agravar, com o passar dos anos, especialmente no RGPS, à mercê de “novidades” como a responsabilidade do INSS pelo afastamento da gestante em ambientes laborais insalubres e a figura do trabalhador intermitente, ambos legados da chamada “Reforma Trabalhista”[9]);
(2) os graves problemas de saúde pública, como a insuficiência de saneamento básico e de cuidados públicos eficazes quanto à erradicação de doenças endêmicas, combate ao tráfico e consumo de drogas, desestímulo ao alcoolismo e ao tabagismo etc.; e
(3) a violência inerente à sociedade contemporânea, seja aquela ligada à criminalidade comum (de feitio essencialmente doloso e patrimonial), seja a que envolve as mortes e mutilações do trânsito, seja ainda o assombroso número de 700 mil acidentes do trabalho/ano em média no Brasil; cada morte ou incapacidade causada por estes fatores interfere no “estoque” e pode e deve ser evitada.
b) Se o problema é de “caixa”, e se as despesas correntes decorrem de benefícios que, por respeito à Constituição e ao Estado de Direito, não podem ser cortados (porque derivam do lícito preenchimento de critérios uniformes de aquisição de direitos previdenciários), qualquer reforma previdenciária a ser feita deve se concentrar naarrecadação, com a cobrança efetiva da dívida ativa previdenciária e a punição exemplar dos sonegadores fiscais. Para tanto, começa-se bem incrementando as atuações da Receita Federal, da Polícia Federal e da Procuradoria Geral Federal, de modo a abolir as “farras” fiscais e a dirimir a noção difusa de que o crime tributário compensa (veja-se que, ao cabo e ao fim, hoje o sonegador evitará a ação penal se basicamente quitar o que deve, antes ou depois da apresentação da denúncia-crime[10]).
c) Por fim, uma reforma “radical” da Previdência Social envolve a melhoria significativa dagestão dos órgãos e entidades ligadas às respectivas políticas sociais. Com isso, evitar-se-ia, por um lado, a sangria dos recursos da Previdência e da Assistência Social, tanto com o pagamento de benefícios indevidos (fruto de fiscalização inadequada), como também, amiúde, com o pagamento de honorários de sucumbência em ações judiciais sabidamente procedentes (fruto de litigância inadequada). E se poderia incrementar, por outro lado, o investimento na seleção, na qualificação e no treinamento dos servidores que prestam esse fundamental serviço à população, assegurando melhores e mais prontos préstimos a quem experimenta contextos de risco social e deve esperar, do Estado, o cumprimento de suas promessas constitucionais.
Mas, é claro, nada disso está ou será dito pela propaganda oficial, porque constrange, deslegitima e não interessa. Sobre a propaganda oficial, aliás ─ inclusive porque ignora todos os fatores acima (como também os ignora, de resto, o novo substitutivo “desidratado” da PEC n. 287/2016) ─, vale bem reproduzir alguns trechos da ADI n. 5.863/DF, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 18/12/2017, que impugna o Anexo I da Lei n. 13.528/2017 (no que destina R$ 99 milhões com publicidade da Reforma da Previdência):
“É natural que cada governo busque a implementação de uma dada ordem de propostas políticas. Se, porém, o governo entende que deve esforçar-se por persuadir a população do acerto de uma proposta polêmica, não pode valer-se de recursos financeiros públicos para promover campanha de convencimento que se reduza à repetição de ideias, teses e juízos que não são de consenso universal. […] A publicidade em favor de uma medida notoriamente controvertida é substancialmente distinta de uma publicidade em favor da conscientização da população sobre a necessidade de cuidados, por exemplo, para evitar a proliferação do mosquito da dengue. […] No caso da reforma da previdência, esse consenso não existe – por isso mesmo não se pode verter recursos públicos exclusivamente para favorecer um dos polos da controvérsia” (g.n.).
Ou ainda:
“Se é indiscutível que a lei pode abrir crédito suplementar para ‘comunicação institucional’, é imperioso que essa lei seja compreendida em termos constitucionalmente adequados. Diante do risco — concretizado na campanha publicitária pela Nova Previdência Social — de uma compreensão da lei que a torna despregada dos limites do art. 37, § 1º da Constituição e dos tantos princípios informadores de um Estado de Direito Democrático, é urgente que esse Tribunal acolha o pedido de procedência desta demanda, para, sem redução de texto, declarar a inconstitucionalidade do entendimento do preceito, objeto da ação, que conduza a nele se ver autorização para campanhas publicitárias oficiais que não apresentem todos os fatos e argumentos necessários para que a população assuma uma convicção bem formada das matérias polêmicas que motivam a publicidade” (g.n.).
Tal cooptação multitudinária com dinheiro público, sem precedentes na História recente do país, ofende o direito difuso à informação ─ porque sugere serem incontroversas teses social e academicamente polêmicas ─, como também os princípios constitucionais da publicidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (art. 37, caput, CF). Ou, na emenda da própria ADI n. 5.863/DF:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL E PROPAGANDA GOVERNAMENTAL.
“1. Propaganda oficial nos meios de comunicação, com finalidade de obter apoio popular para aprovação da chamada ‘Reforma da Previdência’.
“2. Necessidade de interpretação conforme de lei de índole orçamentária ao art. 37, §1º, da CF, que tem por substrato os princípios republicano e democrático, dos quais são corolários o direito fundamental à informação, à impessoalidade, à moralidade, da igual considera de, da igual consideração pelos entes públicos de interesses razoáveis, mas opostos.”
E, no pedido formulado:
“Requer, ao final, que se julgue procedente o pedido e que se fixe interpretação conforme à Constituição para a dotação orçamentária constante do Anexo I da Lei 13.528/2017, em favor da Presidência da República, destinada à comunicação institucional. Deve ser assentado que é inconstitucional o entendimento de que a rubrica de R$ 99.317.328,00, prevista na lei indicada nesta peça, possa ser utilizada no custeio de propaganda governamental com feição de campanha estratégica de convencimento público, em que não se dê abertura à expressão, no mesmo canal publicitário, da pluralidade de opiniões e aos dados diferentes dos que o governo apresenta na campanha pública de persuasão.”
É de clareza solar, não?
E, no entanto, sequer a medida cautelar requerida foi apreciada até o presente momento. Esperava-se que a Min. Cármen Lúcia o fizesse durante o plantão judiciário do STF, poupando-nos da propaganda enfadonha e cara que segue se reproduzindo. Não o fez. O feito foi distribuído ao Min. Marco Aurélio Mello. Segue o jogo.
Por tudo e por fim, amigo leitor, recordaríamos ARISTÓTELES: a dúvida é o princípio da sabedoria. Ou talvez nos bastássemos, menos acadêmicos, com H. GESSINGER: “[…] a dúvida é o preço da pureza. [E] é inútil ter certeza” (“Infinita Highway”. A Revolta dos Dândis, 1987). Tanto esforço ─ e tanto dinheiro ─ seriam afinal necessários, se a inexorabilidade da proposta do Governo fosse… irrefutável?
Pense. Você é réu do seu juízo.
*******
Passado breve intercurso para férias, voltamos com a coluna. Você gostou? Seguimos ouvindo-o, amigo leitor, pelo e-mail abaixo. Algo nos diz que o ano de 2019 será repleto de polêmicas jurídicas… Adiante!
—————————————————
[1] NASKAR, Abhijit. Human Making is Our Mission: A Treatise on Parenting. [s.l.]: CreateSpace Independent Publishing Platform, 2017, passim. O livro trata de paternidade responsável à luz das neurociências, mas algumas de suas lições são de pertinência universal.
[2] Embora, diga-se por honestidade intelectual, essa tese não tenha plena acolhida no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Assim, e.g., no RE n. 94.414/SP, da relatoria do Min. MOREIRA ALVES (TP, DJ de 19.4.1985, p. 5.456 e RTJ 114/237), o Excelso Pretório decidiu, em caso de interesse da Magistratura estadual de São Paulo, que “[n]ão há direito adquirido contra texto constitucional, resulte ele do Poder Constituinte originário, ou do Poder Constituinte derivado. Precedentes do STF. Recurso extraordinário conhecido e provido”. Encontram-se entendimentos diversos, mas sempre a depender das circunstâncias do caso.
[3] Cf., entre outros, http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2016/05/19/internas_economia,532598/cerca-de-r-90-bilhoes-escorrem-pelo-ralo-da-previdencia.shtml. Matéria publicada no Correio Braziliense, em 19/5/2016.
[4] Cf. http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2017/06/cpi-da-previdencia-ouve-cinco-maiores-devedores-do-inss-no-setor-de-frigorificos. Notícia veiculada em 8/6/2017. Para o texto integral do relatório da CPI do Déficit da Previdência, aprovado por unanimidade em 25/10/2017, v. https://www.frenteparlamentardaprevidencia.org/relatoriocpiprev/ (253 páginas). Entre outros aspectos, o relatório concluiu que “[s]ão absolutamente imprecisos, inconsistentes e alarmistas os argumentos reunidos pelo governo federal sobre a contabilidade da Previdência”.
[6] Cf. https://g1.globo.com/economia/noticia/governo-abre-mao-de-mais-de-r-10-bilhoes-com-alivio-de-dividas-de-ruralistas.ghtml. Notícia veiculada em 3/8/2017.
[7] Cf. http://refisdacrise.com.br/2017/12/refis-das-micro-e-pequenas-empresas-sera-sancionado-em-janeiro-garante-presidente-do-sebrae/#more-3220. Notícia veiculada em 20/12/2017.
[8] Cf. https://www.frenteparlamentardaprevidencia.org/relatoriocpiprev/. O relatório observa, p. ex., que “[o]s casos emblemáticos de sonegação que recorrentemente são negligenciados por ausência de fiscalização e meios eficientes para sua efetivação são estarrecedores e representam um sumidouro de recursos de quase impossível recuperação em face da legislação vigente. […] Além disso, a lei ao invés de premiar o bom contribuinte premia a sonegação e até a apropriação indébita com programas de parcelamento de dívidas (REFIS) que qualquer cidadão endividado desse país gostaria de poder acessar” (p. 8). Adiante, nas conclusões, pondera que “o processo administrativo fiscal implica a suspensão da exigibilidade dos tributos até o desenlace administrativo final com o julgamento do caso pelo CARF. Mas não é só isso, pois o fim do processo administrativo fiscal implica, via de regra, o início do contencioso judicial, que leva mais um longo período para ter solução definitiva. […] Tal expediente, na forma como está previsto atualmente em nossa legislação, é um estímulo à sonegação e representa a subtração de importantes recursos à seguridade social. […] Recomenda-se ao TCU, ao Ministro da Fazenda e ao Secretário da Receita Federal do Brasil que em caráter emergencial reforcem a estrutura desses órgãos e promovam mutirões para o julgamento de todos os recursos administrativos que envolvam contribuições sociais até o fim do ano de 2018, além de implementarem imediatamente as determinações contidas no Acórdão nº 1076/2016 – TCU – Plenário” (p. 203).
[9] Trata-se da Lei n. 13.467/2017. Aliás, sabedor disto, o Governo Federal tratou de editar a Medida Provisória n. 808/2017, a inserir na CLT o artigo 911-A, pelo qual “[o]s segurados enquadrados como empregados que, no somatório de remunerações auferidas de um ou mais empregadores no período de um mês, independentemente do tipo de contrato de trabalho, receberem remuneração inferior ao salário mínimo mensal, poderão recolher ao Regime Geral de Previdência Social a diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal, em que incidirá a mesma alíquota aplicada à contribuição do trabalhador retida pelo empregador” (§1º); e, por outro lado, “[n]a hipótese de não ser feito o recolhimento complementar previsto no § 1º, o mês em que a remuneração total recebida pelo segurado de um ou mais empregadores for menor que o salário mínimo mensal não será considerado para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social nem para cumprimento dos períodos de carência para concessão dos benefícios previdenciários” (§2º – g.n.). Cria-se, pois, uma figura “alternativa” de emprego, que é a do contrato de trabalho intermitente, inflando as estatísticas nacionais de emprego; e, na contrapartida fiscalista, nega-se a proteção previdenciária à maioria desses trabalhadores ─ a não ser que queiram e possam recolher a “diferença” de contribuição, em relação ao salário mínimo ─, conquanto tenham, todos, registro em CTPS…
[10] É o que dispõe o artigo 83, §4º, da Lei n. 9.430/1996, na redação da Lei n. 12.382/2011: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput [inclusos os artigos 168-A e 337-A do Código Penal] quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”. O relatório final da CPI do Déficit da Previdência Social recomendou, a propósito, a eliminação dessa hipótese, propondo “Projeto de Lei do Senado, de iniciativa da CPIPREV que altera a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para aumentar as penas e eliminar, no caso de pagamento do tributo devido, a possibilidade de extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária e para criar causas de redução de pena” (p 205).
Guilherme Guimarães Feliciano – Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), gestão 2017-2019 Carlos Alberto Pereira Castro – Juiz Titular da 7ª Vara do Trabalho de Florianópolis/SC. Mestre e Doutor em Direito da Seguridade Social. Ex-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 12ª Região (SC). Autor da ora “Manual de Direito Previdenciário”, em coautoria com o juiz federal João Batista Lazzari, já na 20ª edição (Rio de Janeiro: Forense, 2017)
Magistrado fala das incertezas para a Justiça do Trabalho em 2018 Em artigo publicado no último dia 7/1, no Blog do Frederico Vasconcelos (Folha de S. Paulo), o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, fala sobre os horizontes de incertezas que aguardam a Justiça do Trabalho em 2018. O magistrado também faz uma avaliação sobre o ano de 2017, destacando as dificuldades já enfrentadas no campo do trabalho. Para Feliciano, 2017 foi "um ano de escombros" para o mundo do trabalho. Em relação a 2018, a perspectiva é de "um horizonte de névoas". Confira abaixo o artigo ou clique aqui e acesse. ***
Horizonte de incertezas para a Justiça do Trabalho
O ano de 2017 não foi exatamente animador para a Justiça do Trabalho. E, digo por mim, tanto menos para o Direito do Trabalho.
Com efeito, o Tribunal Superior do Trabalho esteve sob a presidência de quem ─ digo-o com todo respeito ─ houve por bem afirmar, em audiência pública no Senado da República, que “o melhor Estado é um Estado menor”, após fazer severas críticas à jurisprudência consolidada do próprio tribunal que preside (sabendo ser, no particular, uma voz minoritária).
Nada contra convicções ultraliberais, que francamente estão na moda.
Mas, na perspectiva de um ramo judiciário cuja função constitucional é justamente interferir em relações contratuais privadas (e, notadamente, nas relações de emprego), buscando equalizar as tensões entre o capital e o trabalho e fazer valer a letra ─ e a semântica ─ da Constituição-cidadã, defender o “Estado mínimo” é nada menos que preordenar a autoextinção, evocando todo um ideário político setecentista que a civilização superou com o alvorecer do constitucionalismo social (que se inaugurava justamente em 1917, sob o pálio da Constituição mexicana ─ há um século, portanto).
Não por outra razão, aliás, a Lei nº 13.467/2017 quis acorrentar a “criatividade” dos tribunais do trabalho com um novo princípio legal, desses que se rivalizam com o melhor do “non-sense” jurídico mundial: o art. 8º, §3º, da CLT passa a enunciar um “princípio da intervenção mínima”, a reger apenas a Magistratura do Trabalho, qual voto de desconfiança velado do legislador brasileiro. O que isto insinua, caro leitor?…
Além disso, com a perigosa associação entre as reações conservadoras à 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (realizada pela ANAMATRA em Brasília, nos dias 9 e 10 de outubro de 2017, para debater a mesma lei, dita da “reforma trabalhista”) e os fortes ventos liberais que ainda sopram do leste (e o leste, para nós, sempre foi a Europa ocidental), o mês de outubro ressuscitou a cantilena da extinção da Justiça do Trabalho, a reboque de uma proposta de emenda constitucional que, a rigor, nunca existiu formalmente nesta legislatura.
Aliás, a ideia da “absorção” da Justiça do Trabalho pela Justiça Federal da União é tão engenhosa quanto seria a de despejar todo o Oceano Atlântico sobre o Mar Mediterrâneo. Águas diversas, espaços e tamanhos gritantemente díspares. No entanto, a bravata animou muita gente que, ao fitar o retrovisor da História, pensa sempre estar fitando o para-brisa.
Supor que a ordem social brasileira possa prescindir do Direito do Trabalho, e que o Poder Judiciário nacional possa prescindir da Justiça do Trabalho, é quase o mesmo que supor que a Humanidade possa prescindir do século XX.
Já tínhamos, há duzentos anos, contratos de trabalho celebrados com plena liberdade, sem a intervenção do Estado. Não resultou bem: seu legado foi um legado de ignomínias humanitárias (a que denomino, em aulas, de “horrores das revoluções industriais”). E, para que nunca mais fossem vistas, os Estados passaram a legislar a respeito ─ sob genuína vocação universal, como atestaria a criação da Organização Internacional do Trabalho (1919) ─, estabelecendo, para a posteridade, o “minimum minimorum” da cidadania social.
Poderíamos retroceder? Estou convicto de que não. A civilização não retrograda. Evolui, preservando suas conquistas. Ou nosso fim seria o retorno à barbárie.
Aliás, o caso da reforma trabalhista é, a propósito, emblemático: O Peel’s Act de 1802 (ou“Health and Moral’s of Apprentices Act”), considerado a primeira lei trabalhista da contemporaneidade, foi editado precisamente para fazer frente ao adoecimento de jovens trabalhadores na indústria têxtil algodoeira da Inglaterra oitocentista. Entre as suas várias medidas de prevenção, encontrava-se justamente a limitação da jornada dos trabalhadores daquele segmento, como forma de amenizar o problema (que, à altura, já era percebido como uma crise de saúde pública).
Duzentos e quinze anos depois, o gênio legislativo brasileiro vem declarar, no “novo” art. 611-B da CLT (em seu parágrafo único), que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho”… E, não bastasse, reservam à novidade a eufemística expressão “modernização trabalhista”! Piada histórica de mau gosto. Não fosse trágica.
E o que esperar de 2018?
De seguro, névoas. Um nebuloso horizonte de incertezas.
No STF, já passam de dez ações diretas de inconstitucionalidade, que põem em xeque diversos pontos da reforma trabalhista (terceirização de atividade-fim, contrato de trabalho intermitente, novas condições da assistência judiciária gratuita [?] na Justiça do Trabalho, novo regime legal do depósito recursal trabalhista, tarifação das indenizações por danos extrapatrimoniais, extinção da compulsoriedade da contribuição sindical legal etc.). No TST, nas primícias de fevereiro, far-se-á um esforço de ampla revisão das súmulas de jurisprudência, em razão da própria Lei n. 13.467/2017 (conquanto ainda subsistam, em relação a quase todos os novos temas que agora se tornam polêmicos, imensas dúvidas jurídicas de interpretação).
E, para mais, o mercado de trabalho não reagiu como se cogitava (ou como esperavam os próceres da reforma): no primeiro mês subsequente à profunda alteração legislativa, não se criou uma única vaga nova de emprego; ao contrário, fecharam-se 12,3 mil vagas formais.
Por outro lado, houve na Justiça do Trabalho, de imediato, vertiginosa queda do número de novas ações, exponencial o suficiente para levantar suspeitas em torno de sua suposta “bondade”.
No TRT da 4ª Região (RS), p. ex., a média de novos processos trabalhistas entre 11 e 17 de novembro foi de 173, enquanto na semana imediatamente anterior (a reforma entrou em vigor no dia 11/11) a média foi de 2.613. Isto parece revelar que, afinal, a litigiosidade não caiu propriamente; foi, sim, antecipada. E, naquilo em que acaso venha a se reduzir, reduzir-se-á sobretudo pelo receio de litigar sob as novas regras dos tribunais trabalhistas. Incutir temor em jurisdicionados é uma boa maneira de assegurar o acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF)?
Mas há, no final de 2018, uma centelha de inflexão. O Brasil ─ e, como ele, a própria Magistratura laboral ─ dividiu-se esquizofrenicamente após dezembro de 2015.
Tornou-se quase impossível defender o Estado social sem atrair a pecha de “bolivariano” (ou quiçá “mortadela”); ou, ao revés, reconhecer boas coisas no liberalismo político (porque há, sim, boas coisas, notavelmente reveladas nas liberdades públicas dos novecentos) sem merecer a alcunha de “tatcherista” (ou quem sabe “coxinha”).
Mas já se aproximam, a largos passos, as eleições nacionais de 2018. Quando outubro chegar, a população brasileira ─ e não, por ela, o Parlamento ─ poderá finalmente dizer, de própria voz, qual projeto de país quer para si. Com que tônicas, com quais sacrifícios e sob quais prioridades. Quando a esse respeito houver mais certezas, essas tantas névoas começarão a se dissipar. No mundo do trabalho, seguramente. E, estou certo, não apenas nele.
*Guilherme Guimarães Feliciano é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP). É Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).