A pandemia que revela a banalização do sofrimento dos trabalhadores em frigoríficos

Fotografia: Alessandro Dias\r\rJuíza Noemia Aparecida Garcia Porto (Amatra 10/DF e TO), presidente

 

Noemia Porto, juíza do Trabalho, mestre e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

O trabalho em frigoríficos é sinônimo de matemática da produção, contabilizada em segundos, minutos, horas e jornada, com pouca ou nenhuma preocupação com o custo (humano) que resulta de se manter esse sistema. Temas como limites da jornada, desgaste do corpo do trabalhador, imposto por ritmos extenuantes, e, ainda, o assédio moral, e agora a contaminação pelo novo coronavírus, são constantes, e, infelizmente, persistentes, na realidade concreta deste segmento econômico.

A Medida Provisória n° 927, editada em 22 de março de 2020, contemplando regras trabalhistas para enfrentamento da emergência de saúde pública, não foi convertida em lei (“caducou”). Dentre as polêmicas que carregava esteve a tentativa, via relatório do deputado federal Celso Maldaner (MDB-SC), de introdução de norma permanente, sem nenhuma relação com a pandemia, pertinente à restrição de pausas a que os empregados que trabalham no interior das câmaras frigoríficas têm direito, previstas no art. 253 da CLT. Depois, o relator recuou quanto a essa tentativa de atingir norma de Medicina e Segurança do Trabalho.

Recente relatório do Ministério da Economia indica que, no mês de maio deste ano, foram contabilizadas paralisações em 47 abatedouros frigoríficos sob inspeção ano, foram contabilizadas paralisações em 47 abatedouros frigoríficos sob inspeção federal, dos quais 8 por motivos relacionados à transmissão por Covid-19, com interdição promovida por órgãos externos, dentre eles a Secretaria de Saúde, a Secretaria do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.

No final do mês de junho de 2020, em decisão colegiada, e atendendo à demanda judicial proposta pelo Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região restabeleceu a interdição da JBS em Passo Fundo (RS), considerando que as irregularidades praticadas, com violação a normas de segurança ambiental, estavam colocando em risco não apenas os trabalhadores como também os demais moradores do município. Outras decisões da Justiça do Trabalho pelo país indicam a mesma preocupação com o avanço da contaminação
nos diversos frigoríficos.

Certamente, trata-se de atividade econômica essencial, que é a do abastecimento alimentar, todavia, isso não pode se dar a custo da vida e da saúde dos trabalhadores.

 

Em 2011, a ONG Repórter Brasil, com apoio, dentre outras entidades, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), produziu o documentário “Carne e Osso”, que permitiu uma análise crítica do trabalho em frigoríficos e contribuiu para o diálogo tripartite, entre o governo, a representação de trabalhadores e de empregadores. O resultado foi a edição, em abril de 2013, da Norma Regulamentadora (NR) 36. Esse marco regulatório tem por finalidade estabelecer diretrizes que possam contribuir para a prevenção de acidentes e de adoecimentos, cujos índices são altíssimos na indústria frigorífica. Há até hoje, porém, uma conta que não fecha, qual seja, as empresas produzem mais doentes do que a cobertura propiciada pela arrecadação de valores pagos a título de seguro social. Uma força-tarefa recente na cidade de Londrina (PR), por
exemplo, revelou que mais da metade dos trabalhadores entrevistados assumiram ter tomado remédio ou aplicado emplastros ou compressas para conseguir trabalhar.

Com quase uma década de intervalo entre “Carne e Osso” e os acontecimentos recentes dos tempos de pandemia, ainda não foi possível superar as reflexões que continuam sendo necessárias sobre pausas ergonômicas e térmicas e sobre o equilíbrio do meio ambiente laboral. Isso mostra a dificuldade brasileira de se
alcançar uma etapa mais avançada em que os direitos trabalhistas sejam tratados como direitos fundamentais. O cenário permanece permeado pela instrumentalização das pessoas, sem respeito a elas enquanto sujeitos de direitos.

A indústria frigorífica brasileira, que conquistou o mercado internacional, é vista como orgulho para o país. De fato, Estado e sociedade têm interesse na manutenção e no aperfeiçoamento desse segmento, que gera diversos empregos formais e possui cadeia produtiva muito longa. Além disso, a arrecadação
propiciada por tais empresas representa montante relevante no que diz respeito ao FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Todavia, para a fiscalização do trabalho, os trabalhadores, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e o Poder Judiciário Trabalhista aparece uma faceta diferente, qual seja, a de um setor
que, desenvolvendo as suas atividades, deixa um rastro de trabalhadores doentes. Ao fazê-lo, começa, inclusive, a prejudicar o fluxo exportador do Brasil.

No documentário de 2011, impressionam os relatos de dor e de sofrimento; de sentimento de abandono; de atos de fiscalização das autoridades públicas que não modificam a realidade; de descaso do setor econômico; e de infortúnios que atingem definitivamente a vida dos trabalhadores, não apenas no âmbito
profissional, mas também familiar e social. Esse retrato da realidade, conforme advertido no documentário, revela um problema do conjunto da sociedade e não apenas de um setor. Durante a pandemia, produzir a qualquer custo, inclusive o
custo da vida de quem trabalha, apenas emprestou colorido de tragédia e de atualidade a essa narrativa. O relógio que designa uma produção que não pode parar é a fotografia de um sofrimento banalizado em carne e osso.

Na dimensão constitucional democrática de direito, não se pode ignorar a situação dos trabalhadores em frigoríficos. Além dos já conhecidos altos índices de adoecimentos e de acidentes nesse ramo, agora está em curso uma pandemia que atinge e contamina os trabalhadores. Essas ocorrências representam substancial
desafio à realização de direitos fundamentais e ao ideal de um desenvolvimento econômico sustentável.

 

A Constituição de 1988 assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. É garantido, ainda, seguro contra acidentes do trabalho, a cargo do
empregador, mas sem excluir a indenização por este último devida em caso de dolo ou culpa. Em termos constitucionais, o meio ambiente, enquanto bem essencial à sadia qualidade de vida, foi alçado ao patamar de direito fundamental. Essas são
normas de observância obrigatória pelo conjunto da sociedade.

Os trabalhadores continuam a ser vistos e tratados como elementos da produção que precisa ser organizada e que não pode parar. Há algo de velho e de novo nesse cenário, ou seja, a visão do trabalho, e do trabalhador, como mercadoria, sem uma
reorganização produtiva promotora da aliança indissociável entre
desenvolvimento econômico e desenvolvimento social para todos. A questão do trabalho em frigoríficos permanece na pauta dos atores do sistema de justiça para não se permitir a banalização do sofrimento.

 

 

 


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