CNJ completa 15 anos em clima de ‘absolutismo advocatício’

 

Artigo de autoria do Juiz do Trabalho Rubens Curado Silveira, titular da 11a Vara do Trabalho de Brasília. Já foi Conselheiro do CNJ e secretário-geral do CNJ.

 

Neste domingo (14) o Conselho Nacional de Justiça – CNJ completa 15 anos de instalação. No auge da sua juventude, carrega uma história de vários acertos e avanços, permeados por alguns desacertos e retrocessos.

 

O saldo é altamente positivo: profissionalização da gestão, incentivo ao uso de tecnologias (inclusive do processo eletrônico), maior transparência, responsabilidade orçamentária e atenção ao primeiro grau são exemplos de políticas públicas implementadas pelo Conselho e que contribuíram para a inserção definitiva do tribunais brasileiros no terceiro milênio.

 

Ao debutar perante a sociedade, o CNJ presenteia a comunidade jurídica com uma controvertida decisão: o reconhecimento do “poder” (quiçá absoluto) do advogado do réu para, por ato unilateral, suspender prazos processuais.

 

Refiro-me à decisão proferida pelo Plenário do CNJ em 26 de maio último, no Pedido de Providências nº 0003594-51.2020.2.00.0000, que ao conferir “interpretação autêntica” ao art. 3º, § 3º , da Resolução CNJ n. 314/2020 (3), chegou à seguinte conclusão:

 

Diante do exposto, julgo parcialmente procedente o pedido, para esclarecer que a suspensão dos prazos prevista no § 3º do art. 3º da Resolução CNJ n. 314/2020, nos casos ali elencados, não depende de prévia decisão do juiz, bastando a informação do advogado, durante a fluência do prazo, sobre a impossibilidade da prática do ato. Nos outros casos, a suspensão deverá ser determinada pelo juiz (§ 2ª).

 

Vale transcrever trecho do voto em questão, quando faz referência à “presunção de veracidade” da afirmação do advogado peticionante:

 

“Nas reuniões do referido Comitê, do qual participo, defendi justamente a posição de que se o advogado alegasse a impossibilidade de cumprir os prazos processuais, independentemente de qualquer prova, diante da situação excepcional pela qual todos passam, haveria presunção de veracidade dessa alegação e o juiz deveria suspender os prazos processuais em cada processo em que houvesse a alegação.

 

Porém, o desembargador e secretário-geral desse Conselho, Dr. Carlos Adamek, também integrante do Comitê, apresentou proposta mais restritiva: de que apenas em algumas situações, em que se presume a necessidade de prévio contato do advogado com a parte ou de algum tipo de deslocamento, para a prática de determinados atos processuais, bastaria a mera alegação do advogado.

 

Foi exatamente o que prevaleceu nas discussões do Comitê, e o que foi incorporado ao § 3º do art. 3º da Resolução 314/2020: o prazo para “apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos” pode ser suspenso diante da impossibilidade de sua prática, se informada durante a sua fluência, bastando, para isso, a alegação da parte ou do advogado. Então, nos casos previstos no dispositivo, basta a alegação do advogado, ainda que desacompanhado de qualquer prova, por se tratar de casos em que normalmente é necessário contato entre o advogado e a parte para obter informações mais detalhadas sobre os fatos, obter documentos etc.”.

 

Não se deve perder de vista que tal decisão foi proferida no contexto excepcional e emergencial da pandemia da Covid-19, motivador da edição das Resoluções 313 e 314 no intuito de regular “o regime de Plantão Extraordinário” do Poder Judiciário Nacional, uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à justiça neste período emergencial.

 

A excepcionalidade do momento, contudo, não justifica eventuais excessos.

 

São evidentes os incômodos causados à magistratura nacional por, pelo menos, duas controvérsias jurídicas que emergiram dessa decisão:

 

1) teria o CNJ ultrapassado os limites da sua competência constitucional/administrativa para, invadindo a esfera jurisdicional, “legislar” sobre tema processual?

 

2) a suspensão automática do prazo (pela mera juntada de petição) está isenta do contraditório e do controle jurisdicional posterior? Ou é mera presunção relativa que pode ser elidida e, por conseguinte, revista pelo magistrado condutor do processo?

 

Quanto à primeira, o nítido caráter processual da referida decisão, a afetar o dia a dia de cada um dos processos judiciais em trâmite no país, evidencia extrapolação da competência constitucional precípua do Conselho, de controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário (CF, art. 103-B, § 4º).

 

Uma coisa é padronizar o funcionamento dos órgãos da Justiça no período da pandemia (fechamento dos foros, suspensão do atendimento presencial etc.), medidas administrativas que, por impossibilitar ou dificultar o acesso aos tribunais, impõem a suspensão dos prazos processuais. Em outras palavras, um ato de gestão administrativa com repercussão (acessória) na esfera jurisdicional.

 

Outra coisa, bem diversa, é instituir uma suspensão automática de prazo (pelo mero peticionamento), inédita no sistema processual brasileiro, e ainda definir as situações específicas da sua aplicação (contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares e ”outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova”).

 

A segunda questão jurídica diz respeito ao alcance da decisão proferida. Ficou clara a suspensão automática do prazo, decorrente da reconhecida presunção de veracidade da afirmação do advogado peticionante. A dúvida consiste em saber se tal presunção é absoluta ou relativa, já que os efeitos decorrentes serão totalmente distintos.

 

Em se tratando de presunção absoluta (juris et de jure), não cabem argumentos ou provas em contrário, o tema fica isento do controle pelo juiz condutor do processo e o prazo permanece irremediavelmente suspenso até o fim da pandemia (ou até que o peticionante manifeste a possibilidade de prática do ato).

 

Caso se trate de presunção relativa (juris tantum), a afirmação do advogado está sujeita ao contraditório e posterior controle judicial. Logo, na hipótese de o magistrado entender elidida a presunção de veracidade, por decisão fundamentada, o prazo suspenso retoma o seu curso.

 

Preocupa-me a percepção de que parte da advocacia, da magistratura e das Corregedorias vêm conferindo a apressada interpretação de que houve reconhecimento de “presunção absoluta” à afirmação do advogado peticionante. É preciso cautela para não acrescentar palavras não ditas pelo Plenário do Conselho.

 

A decisão do CNJ afirma que a suspensão “não depende de prévia decisão do juiz”. Mas em momento algum exclui a possibilidade do contraditório e do controle judicial a posteriori.

 

E nem poderia. No sistema processual vigente, nenhuma matéria está imune ao contraditório. E nenhuma controvérsia está isenta da emissão do entendimento do juiz condutor do processo. Trata-se de regra básica do devido processo legal.

 

Entendimento diverso quebraria a dialética processual e a necessária paridade de forças das partes (CPC, art. 7º), conferindo ao advogado peticionante (via de regra representante do réu) o “poder” de suspender unilateralmente o prazo e, assim, protelar o processo por significativo período de tempo.

 

Mais. Livre do contraditório e do controle judicial, a tese da presunção absoluta escancara as portas ao abuso de direito. Para ficar em um único exemplo, não faz sentido a suspensão do prazo de defesa em processos corriqueiros/repetitivos que envolvam matéria exclusivamente de direito. Mas a vingar a interpretação absolutista, restaria ao advogado do autor e ao magistrado conformar-se com o papel de observadores passivos de uma decisão monocrática e irrecorrível do representante de quem, via de regra, não tem interesse na solução célere do processo.

 

Seria uma ofensa, às escâncaras, à inafastabilidade da jurisdição (CF, Art. 5º, XXXV), além de interferência à independência judicial do magistrado. Pior: advindas de um órgão com atuação restrita à esfera administrativa.

 

Em síntese, o absolutismo advocatício, além de não encontrar respaldo na literalidade da decisão do Conselho, inova o direito processual, quebra a dialética e a paridade de “armas” das partes processuais, incentiva o abuso de direito, exclui a controvérsia da apreciação do magistrado condutor e, em última análise, contraria princípios básicos do devido processo legal e da Constituição.

 

Repita-se: não me parece ter sido essa a intenção do CNJ. Mas as controvérsias que já se apresentam em todo o país evidenciam a necessidade de esclarecimentos, a fim de colocar o tema no trilho da constitucionalidade.

 

No marco dos seus 15 anos, a magistratura aguarda, ansiosa, o posicionamento do Conselho Nacional de Justiça, na expectativa de que não se consolide um retrocesso.

 

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(1) O autor foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça no biênio 2013/2015 e Secretário-Geral do CNJ no período 2009/2010. É Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB.

 

(2) A excessiva concentração de “poder” na Presidência pode ser destacada dentre os desacertos estruturais do CNJ, tornando-o demasiadamente dependente do perfil e da “afeição” do titular dessa cadeira.

 

Dentre os retrocessos, merecem destaque: a restrição ao acesso à remuneração de magistrados e servidores na regulamentação da LAI e a revogação do dispositivo do Regimento interno que estabelecia“quarentena” aos Conselheiros.

 

(3) Art. 3º, §3º, da Res. CNJ 314: “Os prazos processuais para apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos, somente serão suspensos, se, durante a sua fluência, a parte informar ao juízo competente a impossibilidade de prática do ato, o prazo será considerado suspenso na data do protocolo da petição com essa informação”.

 

Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo: https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2020/06/14/cnj-completa-15-anos-em-clima-de-absolutismo-advocaticio/?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

 

 

 

 


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