Artigos Jurídicos

A DISPENSA EM MASSA É CONSTITUCIONAL?

Autor(a): Grijalbo Fernandes Coutinho e Hugo Cavalcanti Melo Filho

A vã tentativa de naturalizar a dispensa em massa no Brasil

Grijalbo Fernandes Coutinho*

Hugo Cavalcanti Melo Filho**

            O blog Migalhas publicou, hoje, matéria intitulada "TST: Presidente garante demissão coletiva sem negociação sindical", dando conta de que o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, no exercício ocasional da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, em sede de correição parcial, "garantiu a demissão de 150 professores de uma das maiores universidades de Porto Alegre/RS".

            A correição parcial foi requerida em face de decisão proferida por desembargadora do TRT do Rio Grande do Sul que negara a aplicação da regra prevista no art. 477-A da CLT (introduzido na chamada reforma trabalhista), sob os seguintes fundamentos:

“Partindo-se da premissa de que há sim um movimento de despedida imotivada de uma coletividade, a ausência de prévia mediação no plano da representação coletiva do Direito do Trabalho encontra óbice na Ordem Constitucional como apontado na decisão atacada. (...) De resto, a doutrina e jurisprudência pertinentes - a magistrada de primeiro grau transcreve farta jurisprudência sobre a matéria - sempre entendeu pela necessidade da intervenção sindical em se tratando de dispensas em massa, justamente em virtude do grave prejuízo social daí decorrente. Ainda, e tal como assentado pela magistrada de primeiro grau, os princípios constitucionais que sempre autorizaram a adoção desse entendimento permanecem vigentes, a despeito da regra introduzida pelo artigo 477-A da CLT alterada pela lei 13.467/17.”

            Em sua decisão, o Presidente do TST entendeu que, para impedir o empregador de utilizar o direito potestativo de dispensa sem justa causa, “a autoridade coatora e a autoridade requerida, contra expresso texto de lei, exigiram o que a lei expressamente dispensa, que é a intermediação negocial do sindicato de classe para as demissões ditas de massa”.

            O presidente do Tribunal considerou que os juízes gaúchos estavam a cercear a entidade de ensino "no gerenciamento de seus recursos humanos, financeiros e orçamentários, comprometendo planejamento de aulas, programas pedagógicos e sua situação econômica”, porque impediram-na de realizar demissões nas janelas de julho e dezembro, apenas pelo fato do número de demissões realizadas, “ao arrepio da lei e do princípio da legalidade".

            Vê-se que, para o Presidente do TST, a dispensa de empregados é verdadeiro direito potestativo do empregador. Filia-se à doutrina do employment at will, na linha do que se pratica nos Estados Unidos da América, segundo a qual nada impede a dispensa do empregado, ainda que não haja motivo, numa espécie de “denúncia vazia” do contrato de trabalho. Por outro lado, afirma que as decisões tomadas elas instâncias inferiores se deram ao arrepio da lei e do princípio da legalidade. Mas, na verdade, a decisão proferida em correição parcial é que está em confronto com a Constituição da República e com o Direito Internacional do Trabalho, como se pretende demonstrar.

          No propósito de ampliar o poder do empregador de despedir, sem causa, os seus empregados, a Lei nº 13.467/17 equiparou, no artigo 477-A, as dispensas individuais e coletivas:

"Art. 477-A. As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”.

          Desconsiderando o fato de o artigo 7.º, inciso I, da Constituição vedar a dispensa arbitrária ou injusta, a lei trilha o temerário caminho da inconstitucionalidade, pois, ainda que se admitia a necessidade de regulamentação do referido inciso, não é dado ao legislador ordinário legislar em sentido diametralmente oposto às regras constitucionais, as quais, ainda que sejam normas de eficácia contida, não se despem de sua eficácia imediata. Bem diferente da inexplicável omissão legislativa quanto à regulamentação do preceptivo constitucional, por 30 anos, é a tentativa de inserir em lei ordinária regra absolutamente colidente com o mesmo preceptivo.

De outro lado, o artigo 477-A não resiste à aferição de compatibilidade vertical com a Convenção 158 da OIT, o que impõe a paralisação de seus efeitos. É de registrar, com Souto Maior (2017), que a Convenção 158, apesar de denunciada pelo Brasil no governo Fernando Henrique Cardoso, “pode ser utilizada como fonte formal do direito do trabalho seja por força do art. 8º, seja pela literalidade do art. 5º, § 2º, da Constituição”. De igual modo, contraria a Convenção nª 154 da Organização Internacional do Trabalho que determina a negociação coletiva e a participação do sindicato em questões de interesse comum.

Por fim, o legislador, ao introduzir na ordem jurídica a equiparação entre dispensa coletiva e dispensa individual, não levou em conta que a dispensa coletiva é um instituto do Direito Coletivo do Trabalho, que possui princípios, normas, institutos e instituições totalmente diversas do Direito Individual do Trabalho. Vige neste ramo do Direito, como objeto, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, e os direitos mais elevados da dignidade humana.

          A presença do interesse público primário de toda a sociedade impõe a este ramo do Direito uma proteção especial, com a efetiva e necessária participação dos legitimados ou autores ideológicos, entre eles, o Ministério Público do Trabalho, neste desiderato, como gestor do microssistema de tutela coletiva e dos instrumentos de que dispõe para proteger os direitos sociais e indisponíveis dos trabalhadores.” (SANTOS, 2017)

          É bem verdade que, até aqui, o direito trabalhista brasileiro não havia se preocupado com o tema. Para além da proteção genérica insculpida no art. 7.º, I, da Constituição, ainda não regulamentado, nada dispunha a ordem jurídica acerca da dispensa em massa de empregados, diferentemente do que ocorre em outros países, especialmente da Europa, em face da necessidade de adequação da ordem interna com a Diretiva n. 98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998.

          Assim é que havia quem sustentasse “que pelo fato de não existir norma expressa que limite a dispensa coletiva esta poderia ocorrer “livremente”, pois o juiz estaria restrito a decidir dentro da lei (e lei não existiria). Novamente o debate jurídico foi tomado pelo debate econômico e com este se confundiu”(TEODORO e SILVA, 2009).

          No final de 2008 e no início de 2009, decisões dos Tribunais da 2.ª e da 15.ª Regiões Trabalhistas reputaram nulas dispensas em massa então promovidas, a pretexto de dificuldades econômicas empresariais, no auge da crise iniciada com a falência do Banco Lehman Brothers. A decisão do TRT 15, no paradigmático caso da Embraer, foi submetida à apreciação do Tribunal Superior do Trabalho, no qual se fixou a tese de que não pode haver dispensa coletiva que não seja precedida de negociação coletiva.

A publicação da Lei n.º 13.467/17, que, em seu artigo 477-A, autoriza a dispensa em massa de trabalhadores, sem qualquer participação das entidades sindicais e sem prévia negociação coletiva, representa, então, absurdo retrocesso.

Ora, o Direito do Trabalho encontra-se fundado em princípios, tendo a mais absoluta compatibilidade com toda e qualquer diretriz principiológica afirmativa dos Direitos Humanos da classe trabalhadora, como se nota, por exemplo, da essência do princípio da vedação do retrocesso social. A observância desse princípio pelo intérprete preserva o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados, de modo que esses direitos são constitucionalmente garantidos (CANOTILHO, 2003, p. 475). Por incidência desse princípio, extraem-se, também, o princípio da progressividade social (art. 7º, I) e os princípios da proteção e da norma mais favorável (REIS, 2010, p. 10), bem como que se afastam do ordenamento jurídico todas e quaisquer normas violadoras da função do Direito do Trabalho (RODRIGUEZ,1993).

A disposição do art. 477-A, a autorizar a dispensa em massa de trabalhadores, configura explícito rebaixamento das condições gerais de trabalho vetado pelo comando do caput do art. 7º da Constituição da República, do qual emana o princípio da proibição do retrocesso no âmbito das relações de trabalho.

Para além dessa barreira constitucional, existem tantas outras como o princípio da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho como fundantes da República (art. 1º) e o funcionamento da ordem econômica pautada pela valorização do trabalho humano e pela redução das desigualdades sociais (art. 170, VII).

No plano internacional, os pactos sobre Direitos Humanos – com destaque para o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) e para as Convenções da OIT – repelem a possibilidade de o trabalho ser tratado como mais uma mercadoria, bem como vedam quaisquer retrocessos sociais, como se configura a permissão de dispensa massiva indiscriminada, sem a interveniência sindical ou negociação coletiva prévia.

            Por tudo isso, faz-se necessária a defesa do Direito Constitucional do Trabalho, fiel às suas origens e à sua principiologia protetiva, para afastar do mundo jurídico as interpretações judiciais ou mudanças legislativas comprometidas com o aprofundamento das desigualdades sociais nas relações conflituosas entre o capital e o trabalho.

Se na arena política cabe à classe trabalhadora, organizada em sindicatos e partidos operários, derrotar a “reforma” trabalhista, como uma das expressões ou vertentes da luta de classes contra o despotismo do capital, sob o ângulo jurídico, a “reforma” trabalhista deve ser enfrentada por viés de direito contra-hegemônico ao receituário neoliberal. A Constituição de 1988 e o Direito Internacional do Trabalho oferecem rico panorama normativo para afastar os retrocessos sociais presentes na proposta debatida no Parlamento. Ademais, examinar o tema a partir de luzes principiológicas inspiradoras do Direito do Trabalho e do Direito Constitucional do Trabalho muito auxiliará na tarefa persistente de evitar a derrocada da civilização laboral alcançada nos marcos da frágil democracia burguesa.

Os atores responsáveis pelo desmonte trabalhista, incluindo os agentes que deliberadamente ingressaram na instituição com o propósito de liquidá-la por dentro, ou seja, de dizimar o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, ainda que, ocasionalmente, ocupem postos-chave na estrutura do Judiciário Trabalhista a lhes permitir decisões como a aqui examinada, não conseguirão impedir o exercício pleno da função jurisdicional pela magistratura do trabalho efetivamente comprometida com o Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes.Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

REIS, Daniela Muradas. O princípio da vedação do retrocesso no direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2010.

RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1993.

SANTOS, Enoque Ribeiro dos. A dispensa coletiva na Lei n. 13.467/2017 da Reforma Trabalhista. Disponível em http://genjuridico.com.br/2017/07/26/dispensa-coletiva-na-lei-n-13-4672017-da-reforma-trabalhista/. Acesso em 15.8.17.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Os 201 ataques da “reforma” aos trabalhadores. Disponível em: <http://www.jorgesoutomaior.com/blog/os-201-ataques-da-reforma-aos-trabalhadores>. Acesso em: 20 jun. 2017.

TEODORO, Maria Cecília Máximo e SILVA, Aarão Miranda.

A imprescindibilidade da negociação coletiva nas demissões em massa e a limitação de conteúdo constitucionalmente imposta. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6082. Acesso em 15.8.17.

A PROFISSÃO ESGARÇADA: A MAGISTRATURA TRABALHISTA EM TEMPOS DE CRISE

  Confira no link abaixo o artigo do Juiz e Professor Roberto Fragale Filho: Clique aqui

A TERCEIRIZAÇÃO E A REALIDADE

 

Artigo publicado no blog do Fred

http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2017/09/22/terceirizacao-de-servicos-e-a-realidade/

 

“Terceirização de serviços e a realidade

POR FREDERICO VASCONCELOS

Sob o título “Terceirização e redução salarial: desvelar e ‘revelar‘”, o artigo a seguir é de autoria de Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e professor da Faculdade de Direito da USP, e Rodrigo Carelli, procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e professor da UFRJ.

Uma pesquisa deve levantar véus (“desvelar”) ao invés de sobrepô-los (“revelar”, em estrita etimologia). Na contramão dessa premissa, estudo recente publicado pela revista “Estudos Econômicos”, da Universidade de São Paulo, traz a lume conclusões narrativas que parecem destoar dos seus próprios números em torno do fenômeno da terceirização de serviços e da sua realidade remuneratória.

O estudo revela que o salário do empregado, quando migra do trabalho formal direto para a terceirização, tem uma redução média de 2,3%. Segundo os autores, a pesquisa decorreu da observação da realidade de mais de 13 milhões de trabalhadores entre os anos de 2007 e 2014.

Dois fatos, a propósito, chamam a atenção.

O primeiro se refere ao descompasso entre tais resultados e os obtidos em duas outras apurações semelhantes.

Levantamento realizado em 2016 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), por exemplo, mostra que essa variação negativa atinge 11,5%. Da mesma forma, pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2011 apontava um número muito superior, de 27,1% de queda.

As diferenças entre os diagnósticos podem ser explicadas, entre outras razões, pelas diferentes metodologias adotadas. O modo como os dados da derradeira pesquisa vêm sendo divulgados, contudo, merece censura. O estudo parece ser utilizado pelos seus autores para atenuar o tamanho do problema e, mais grave, para induzir veículos de comunicação e seus usuários a erro, sinalizando vezo perigoso de tendência.

Reportagem publicada na Folha (“Mercado”, 3/9) comprova essa análise. Os pesquisadores defendem que o objetivo é desmontar um discurso alarmista de que a terceirização é precarização. Ora, ainda que em patamares muito menores do que outros levantamentos, o estudo revela justamente o contrário.

Mais importante, todavia, que a questão de interpretação dos fatos sociais será agora a das recentes alterações da legislação, com a sanção das leis federais 13.429/2017 e 13.467/2017.

Há quem defenda que, sob as novas normas, está autorizada a terceirização de quaisquer atividades privadas, sob quaisquer condições. Poderíamos ter, por exemplo, na linha de produção de uma montadora, um trabalhador direto e um trabalhador terceirizado, nas mesmas funções, com salários diversos.

Independentemente do apuro e da metodologia o cerne da questão jurídica será este: tal compreensão das leis está conforme a Constituição da República? É razoável supor que, sob o manto da isonomia e da não-discriminação, um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para a mesma função, por uma empresa terceirizada, recebendo remuneração reduzida?

O trabalho não é mercadoria de comércio, reza o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (1919), de que o Brasil é país fundador.

Mesmo sob o novel paradigma legislativo, tudo aquilo que o estudo falha em revelar, como elemento do mundo do ser, é precisamente aquilo que o sistema jurídico – e, com ele, o subsistema judiciário – tem de fazer valer, como elemento do mundo do dever ser: a terceirização de serviços, admita-se ou não em “atividades-fim”, não poderá precarizar. Não poderá discriminar. E tampouco poderá fraudar."

ARTIGO PUBLICADO NO JOTA - COLUNA JUÍZO DE VALOR - JUIZ GUILHERME FELICIANO

Reforma Trabalhista: por detrás do jogo de espelhos

 

O que aconteceu em outros países que adotaram iniciativas menos radicais que o Brasil?

 

Guilherme Guimarães Feliciano

 

Germano Silveira de Siqueira

     

“Triste figura, a daqueles que vivem como num jogo de espelhos em que só eles se veem reflectidos”

 

(Pedro CHAGAS FREITAS, 1979-__).

 

Como você já sabe, caro leitor, foi sancionada pelo presidente Michel Temer, no último dia 13 de junho, a Lei n. 13.467, que consagra a chamada reforma trabalhista brasileira. Era, na origem, um projeto de lei que pretendia alterar e introduzir alguns poucos artigos na CLT, mas já com gravidade bastante para incorporar ao ordenamento jurídico o chamado “negociado sobre o legislado”. Já então era perigosa: na atual moldura sindical brasileira, sem antes se revisar a lei de greve (Lei n. 7.713/1989) e promover uma reforma sindical ampla, que fortaleça e confira maior representatividade aos sindicatos, tal reforma significaria ─ como significará ─ simplesmente chancelar, sem maiores constrangimentos, a celebração de acordos em massa, não raro por sindicatos “pelegos”, meramente cartoriais, com a única finalidade de reduzir direitos mínimos assegurados em lei. Os Estados Unidos da América bem conhecem a realidade dos “yellow unions” (= sindicatos amarelos)… In verbis:

 

“Company or ‘yellow’ union is a worker organization which is dominated or influenced by an employer, and is therefore not an independent trade union. Company unions are contrary to international labour law (see ILO Convention 98, article 2). They were outlawed in the United States by the 1935 National Labor Relations Act §8(a)(2), due to their use as agents for interference with independent unions. Company unions persist in many countries, particularly with authoritarian governments.”[1]

 

Em bom português (tradução livre):

 

“Um sindicato de empresa ou “amarelo” é uma organização de trabalhadores dominada ou influenciada por um empregador e, por conseguinte, não é um sindicato independente. Os sindicatos de empresas contrariam o direito internacional do trabalho (v. Convenção 98 da OIT, artigo 2º). Eles foram proibidos nos Estados Unidos pela Lei Nacional de Relações de Trabalho de 1935 ─ §8 (a) (2) ─, devido ao seu uso como agentes que interferem com [a atuação de] sindicatos independentes.Os sindicatos de empresas persistem em muitos países, particularmente onde há governos autoritários”.

 

Qualquer semelhança com a sua realidade, querido leitor, não será mera coincidência. Há muitos sindicatos “amarelos” no Brasil. A Lei n. 13.467/2017 não os levou em consideração.

 

Mas a reforma trabalhista foi além. A partir do relatório do Deputado Rogério Marinho foram propostas e acolhidas quase duzentas mudanças na CLT, desta feita com o ânimo de alterar completamente o eixo lógico e axiológico da Consolidação, interferindo com a própria principiologia do Direito do Trabalho. Disso já falamos em outras colunas. E, entre os mecanismos engendrados para instrumentalizar a aprovação dessa matéria ─ como, p. ex., liberação de emendas parlamentares (Ricardo Ferraço foi o relator da reforma trabalhista na Comissão de Assuntos Sociais e recebeu R$ 7,6 milhões nos meses seguintes ao seu relatório com parecer favorável[2]) ─, os segmentos interessados valeram-se do que Saul Alinsky identificaria como uma de suas “táticas de confronto”, provavelmente à altura da 13ª regra: “Escolha o alvo, congele-o e polarize-o”[3].  Pois bem: o alvo escolhido foi a Justiça do Trabalho. Eis a “bola da vez”, o novo objeto do discurso apocalíptico. Discurso que, a propósito, tem animado inclusive uma série de “advertências” gestadas para intimidar juízes do Trabalho, dentro e fora da instituição, constrangendo-o no seu mister constitucional de interpretar/aplicar o “novo” Direito do Trabalho, tal como vazado na Lei n. 13.467/2017. “Aplique o texto e não o interprete”, ouve-se aqui e acolá. Como se isto fosse possível.

 

A propaganda baseada nas falácias chegou a ludibriar inclusive elevadas autoridades judiciais da República, como p. ex. o Ministro Luís Roberto Barroso que, em importante pronunciamento que fez por ocasião do Brazil Forum UK 2017 (tradicional evento realizado pela London School of Economics, com pensadores brasileiros e estrangeiros, na Universidade de Oxford), ao discorrer sobre a realidade do trabalho ─ e da instituição judiciária que lida com esse tema ─ no Brasil, afirmou que:

 

  1. a) a Justiça do Trabalho alberga 98% de todas as demandas processuais trabalhistas do planeta; e que

  2. b) o Citibank estaria deixando a operação de varejo no Brasil em razão dos “transtornos” causados pela legislação trabalhista ou pela Justiça do Trabalho.

Duas inverdades absolutas. Mais que imprecisas, infundadas. Para mais, ilações profundamente injustas, se considerarmos qual é o papel do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho em um dos países mais desiguais do planeta; e se considerarmos que, a partir de falácias como essa, criou-se o ambiente para uma reforma trabalhista radical e desequilibrada, redutora de garantias conquistadas ao longo de quase um século, conquanto o país seja signatário do Pacto de San José da Costa Rica (tendo se comprometido, nos termos do art. 26, a  “adotar providências […] a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, […] na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”… [g.n.]).

 

Façamos, pois, uma breve desconstrução de tais dados. Outros já a fizeram, inclusive à época. Infelizmente, sem a penetração suficiente para fazer repensar a reforma (ao menos quanto a este “fundamento”). Então, convirá sempre insistir.

 

A Justiça do Trabalho albergaria 98% de todas as ações trabalhistas do mundo? Não, amigo leitor. Não é verdade.

 

A Justiça do Trabalho brasileira tem, entre processos novos e pendentes, algo em torno de 7,5 milhões de processos para resolver; e este é todo seu acervo. Atente para o dado. Noutro dia, halterofilistas da desinformação afirmavam, sem maior constrangimento, que a Justiça do Trabalho respondia, sozinha, por 100 milhões de processos no Brasil… Absolutamente mendaz.

 

Observe que, tomando em conta o número de 7,5 milhões e a fictícia marca dos 98% referida pelo Min. Barroso, isso equivaleria a dizer que o resto do mundo, responsável pelos outros 2% de demandas trabalhistas (= 100% – 98% = 2%, com o perdão da minúcia), responderiam por aproximadamente 160.000 ações trabalhistas… Ou seja, pelos dados em questão, haveria apenas 160.000 ações trabalhistas em todo o mundo restante (que, se divididas pelos outros 192 países, resultariam em uma média de 833 processos anuais por cada; ou, se dividíssemos esse suposto acervo apenas pelos 34 países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – OCDE, ficaríamos com a irrisória quantidade de 4.705 processos/ano por cada dos países integrantes dessa Organização, o que é obviamente irreal.

 

Com efeito, penas nos Estados Unidos da América, “há razoável segurança para estimar que os processos trabalhistas na Justiça dos Estados devem girar em torno de 1,7 milhão ao ano”[4]; e estamos falando apenas dos Estados da União, sem computar as ações na Justiça Federal, de menor monta. Do mesmo modo, são 600 mil ações trabalhistas ao ano na Alemanha. Em Portugal, no ano de 2015, o número de processos novos nos tribunais do trabalho, em primeira instância, foi de 44.225, sendo o valor mais baixo da atual série estatística (iniciada em 1993)[5]; e, ainda assim, muito superior a qualquer uma daquelas “médias” resultantes.

 

Tudo a demonstrar que o percentual alarmista de 98% das demandas trabalhistas mundiais concentradas no Brasil é falso e inverossímil. Não se ignora, é claro, que a litigiosidade é elevada, inclusive porque a Justiça do Trabalho brasileira é usualmente utilizada para postergar a implementação de direitos sociais “stricto sensu”, o que se associa à própria cultura de sonegação que informa certos segmentos do patronato (consubstanciando-se em frases como a célebre “vá procurar seus direitos”). Mas nada próximo do que constou de seu recente libelo acusatório.

 

Aliás, vale registrar que mais de 50% dos pedidos levados à Justiça do Trabalho dizem respeito apenas ao não pagamento de direitos rescisórios, ou seja, aqueles direitos básicos a que todos os trabalhadores fazem jus quando são dispensados (saldo salarial, aviso prévio, 13º salário, férias mais 1/3, FGTS mais 40%, seguro-desemprego). Sonegar tais direitos é tão inaceitável quanto alguém servir-se em um restaurante, fartar-se ao bel prazer, encerrar o serviço, levantar-se com a família sem pagar a conta e por fim dizer ao dono do estabelecimento que, se acaso quiser ver-se quitado, “procure os seus direitos” perante a justiça comum (na expectativa de, adiante, pagar apenas a metade ─ ou quiçá 1/3 ─ do preço de cardápio, se possível em duas ou três parcelas, em um amistoso acordo judicial). Parece justo, leitor? Porque, se não for justo para com um honesto comerciante, não o será tampouco para com um honesto trabalhador.

 

A alta litigiosidade, ademais, não e idiossincrasia da Justiça do Trabalho. Basta ver que, nas Justiças estaduais, o número de ações em tramitação sobe para 80 milhões de processos, enquanto que, na Justiça Federal, tal quantitativo é da ordem de 11 milhões.

 

Interessaria discutir, outrossim, quem litiga, em paralelo ao quê se litiga. De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Justiça de 2013[6], os Bancos (com 38,14%) foram os indicados como os maiores litigantes em todo o Poder Judiciário (ora como autores, ora sobretudo como réus) , figurando também com esse perfil nos litígios perante a Justiça do Trabalho (20% da demanda). À frente da lista, nesse setor, estavam a Caixa Econômica Federal (5,29%), o Banco do Brasil (4,82%), o Itaú (3,61%), o Santander (2,90%), o Banco Itaú S/A (2,89%) e o Unibanco (0,72%). Se observamos especificamente os dados da Justiça do Trabalho[7] para 2017, veremos que entre os quarenta maiores litigantes, de acordo com os dados do Cadastro Nacional de Devedores Trabalhistas (CNDT), estão o Banco do Brasil (18º) e a Caixa Econômica Federal (32º).

 

Mas, por falar em bancos, tratemos da segunda falácia.

 

O Citibank deixou o país ─ ou estaria a deixá-lo ─ por causa da Justiça do Trabalho? Não.

 

A bem da verdade, a decisão de venda de sua operação de varejo no Brasil nada tem a ver com causas trabalhistas. Mesmo com clientela elitizada em um país pobre e desigual, o Citibank “teve lucro líquido de R$ 958,163 milhões em suas operações no Brasil em 2016, o que representa um aumento de 7,2% em relação ao ano anterior”[8]. A rigor, já no dia 24/3/2016, no Caderno de Economia do jornal “O Estado de São Paulo”, uma manchete anunciava que, “[à] venda no Brasil, lucro do Citi salta mais de 600% em 2015” , e o texto a seguir dizia que, “[n]a contramão do mercado, subsidiária do banco americano lucrou R$ 894,2 milhões no ano passado com a diminuição das provisões contra calote”. E dizia mais, que a “operação de varejo está à venda juntamente com as unidades da Argentina e da Colômbia”. À altura, a Argentina já navegava sob ventos neoliberais, com MAURÍCIO MACRI (desde 12/2015). Ainda assim, o Citi a incluiu no “pacote”.

 

Bem se vê, ademais, que o Citi experimentava, no Brasil, boa lucratividade por dois anos seguidos. Sua decisão, porém, era parte de uma estratégia maior, que envolvia mais alguns países e levava em conta outros inúmeros fatores[9]. Nenhum deles, aparentemente, associado à Justiça do Trabalho.

 

Houvesse quaisquer dúvidas, bastaria ver o “Diário de Pernambuco” de 16/7/2015, que já dava conta desses outros problemas, todos distantes da Justiça do Trabalho (porque ligados muito especialmente à sua clientela, a apresentar percentual de inadimplência que a instituição não admitia). Dizia a matéria:

 

“O Citibank reduziu as operações de crédito no Brasil no segundo trimestre, em meio a um aumento da inadimplência. (…) Ao mesmo tempo, os calotes, considerando os atrasos acima de 90 dias, subiram de 1,9% para 2,4%. O Citi, terceiro maior banco dos Estados Unidos, divulgou nesta quinta-feira, 16, seus resultados trimestrais. A instituição não informa outros números do Brasil, onde reestruturou sua operação de varejo recentemente”.

 

Logo, a afirmativa de que o Citibank foi “escorraçado” do Brasil pela Justiça do Trabalho ou pela legislação trabalhista vigente é uma afirmação rigorosamente falsa. Nada mais do que isto.

 

Dito isto, sobrevém uma última questão.

 

Aprovada a Reforma Trabalhista, é necessário aprofundar alguns questionamentos que já vinham sendo feitos. O que aconteceu em outros países que adotaram iniciativas até menos radicais que a reforma brasileira? Vejamos.

 

Como dissemos aqui, a proposta convertida em Lei 13.467/2017, sobre alterar sobremodo os eixos orientadores do Direito e do Processo do Trabalho, não corresponde à sua falsa premissa de trazer “modernidade” para as relações de trabalho e/ou de propiciar maior desenvolvimento para a economia brasileira. Bem ao contrário, outras experiências nacionais bem demonstram que tal reforma nada trará de “modernidade” ─ a não ser que compreendamos tratar-se da chamada “modernização conservadora”[10] ─ e, para mais, não gerará novos empregos.

 

A Lei 13.467/2017, na verdade, reduzirá oportunidades de trabalho protegidas (= trabalho decente), incrementando oportunidades de subempregos e formas de trabalho precárias, com provável rebaixamento da média universal de salários. Seguimos, portanto, na contramão da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que aposta no trabalho decente como única alternativa para diminuir a pobreza extrema no mundo, e com a qual se comprometeu o Brasil em 2015. Mas sobre isto já falamos na coluna anterior.

 

É importante, nesse passo, ter em conta que justamente o ano de 2015 foi lembrado como o primeiro ano em que 1% (um por cento) da população mundial passou a deter patrimônio equivalente aos outros 99% (noventa e nove por cento) da humanidade. A mesma pesquisa identifica que 0,7% desse contingente monopoliza 45,2% da riqueza total e os 10% mais ricos do planeta têm 88% dos ativos totais[11]. Esses números indicam uma desigual concentração de riqueza e renda, com terríveis desdobramentos. Tais dados acentuam-se no Brasil, onde ainda se encontram fortes traços da cultura escravocrata, patrimonialista e clientelista, com diversos exemplos candentes a se alinhavar. Veja-se, p. ex., que o Governo brasileiro só admitiu a existência de trabalho escravo contemporâneo em território nacional em 1995, após inúmeras denúncias internacionais (e, de 1995 a 2012, o Poder Público já havia resgatado mais de 42 mil pessoas em situação análoga a de escravo). Veja-se, mais, que o país só regulamentou a mínima isonomia entre o trabalho doméstico e o trabalho urbano em junho de 2015 (LC n. 150/2015, editada a partir da EC n. 72/2013).

 

Nesse preciso contexto de aguda desigualdade ─ com ilhas de incivilidade que remontam ao medievo ─, votou-se, a toque de caixa, o substitutivo do PL n. 6.787, sem qualquer debate realmente sincero. Para que se tenha ideia, o relatório foi apresentado em 12/4/2017 e já em 17/4 ─ uma semana depois ─ foi aberto o prazo de cinco sessões para emendas. Em 25/4, o relatório já estava apreciado na Comissão Especial, e logo em seguida, no dia 26/4/2017, aprovou-se a matéria no Plenário da Câmara, inclusive sem qualquer estudo dos impactos negativos da proposta no orçamento da União, como exigia a Constituição (art. 113 do ADCT, na redação da EC n. 95/2016), à vista da renúncia de receita decorrente da própria supressão de um tributo federal (a saber, a contribuição sindical obrigatória). Noutras discussões tão relevantes quanto esta, como foram as do Código Civil e do Código de Processo Civil, os debates levaram anos a fio. Assim é que o PL n. 166, origem do novo CPC, chegou ao Senado em 2010, para ser sancionado somente em 2015. Já o anteprojeto que resultou no Código Civil de 2002 remonta aos anos setenta do século passado… E, nada obstante, críticas sobrevieram após a aprovação de ambos os códigos. No caso da Lei n. 13.467/2017, o que mais se vê são improvisos legislativos. As críticas não tardariam, como não tardaram. E já chegam ao Supremo Tribunal Federal (ADI n. 5.766, ajuizada pelo Procurador-Geral da República). Na dicção do Procurador Rodrigo JANOT, a Lei n. 13.467/2017 veio a lume com o propósito de desregulamentar as relações trabalhistas e o declarado objetivo de reduzir o número de demandas na Justiça do Trabalho, inserindo na Consolidação das Leis do Trabalho noventa e seis dispositivos com intensa desregulamentação da proteção social do trabalho e redução de direitos materiais dos trabalhadores. E arremata (tratando da curiosíssima “gratuidade paga” introduzida pela Reforma):

 

“Na contramão dos movimentos democráticos que consolidaram essas garantias de amplo e igualitário acesso à Justiça, as normas impugnadas inviabilizam ao trabalhador economicamente desfavorecido assumir os riscos naturais de demanda trabalhista e impõe-lhe pagamento de custas e despesas processuais de sucumbência com uso de créditos trabalhistas auferidos no processo, de natureza alimentar, em prejuízo do sustento próprio e do de sua família”.

 

E o que reformas dessa magnitude trouxeram para países que já as experimentaram?

 

Vejamos alguns brevíssimos exemplos. O leitor poderá aprofundar facilmente tais pesquisas e chegar às suas próprias conclusões.

 

Na Espanha, depois da reforma de 2012, o desemprego aumentou, houve redução de salários médios e o valor do salário pago em território espanhol é hoje um dos mais baixos da União Europeia. Houve, sim, um posterior ─ e tímido ─ crescimento da economia espanhola, mas que bem se explica por razões diversas de quaisquer associações plausíveis com a nova regulação trabalhista. No El País de 11 de julho último, a manchete era: “Reforma trabalhista espanhola faz cinco anos: assim é a geração de jovens desencantados que ela deixou”[12].

 

Em Portugal, da mesma forma, foram introduzidas diversas modificações para reduzir custos empresariais, especialmente ao ensejo do chamado “Programa de Estabilidade e Crescimento” (2010). Foi assim, p. ex., com a diminuição do valor da indenização por despedimento (antes de 30 dias por ano de trabalho, hoje de apenas 12 dias), a redução pela metade do pagamento de horas extras e de descansos remunerados e a supressão parcial das folgas compensatórias. Em Portugal, ademais, não se admite a despedida arbitrária; mas, com a reforma, expandiram-se sensivelmente os motivos válidos para dispensa foram ampliados, inclusive os relacionados à gestão das empresas ou à inadaptação do trabalhador ao serviço. E o resultado não foi propriamente a expansão do trabalho decente. Expandiram-se, ao revés, postos de trabalho de menor qualidade (contratos temporários e a prazo, subcontratações, contratos a tempo parcial etc.).

 

No México, após a reforma trabalhista de Felipe Calderón (2012), passados cinco anos, o número de desempregados aumentou e o que se deu foi basicamente uma migração dos postos de trabalho, antes efetivos e duradouros, para postos tendencialmente precários (trabalho terceirizado, por prazo determinado ─ como os “contratos por prova” ─ ou a tempo parcial). Segundo a Pesquisa Nacional de Ocupação e Emprego do Instituto Nacional de Estadística y Geografía, mais de 57% da população mexicana economicamente ativa sobrevive na informalidade laboral.  Há um déficit de cinco milhões de empregos e 82% da PEA recebem menos do que 100 pesos diários (o que equivale a cerca de US$ 5). A reforma ainda levou à queda do consumo e atingiu setores importantes da economia mexicana.

 

Mesmo na Alemanha, o chamado “Plano Hartz” ─ da “Agenda 2010” de Gerhard Schröder ─ jamais foi uma unanimidade. O tal plano incrementou, entre outras medidas,  (a) a expansão dos contratos temporários; e (b) a criação dos “minijobs”, que são postos de trabalho com carga horária de até 30 horas semanais (similares aos nossos contratos a tempo parcial), mas com salários máximos € 450,00/mês, sem a incidência de impostos e com um seguro-saúde. A ideia-base era a de que seria melhor ganhar pouco a ficar sem trabalho (mesma ideia repetida à exaustão, no Parlamento, para a aprovação da Lei n. 13.467/2017); mas o resultado foi bem diverso: o sistema alemão gerou, como os demais, empregos precários e índices de pobreza incomuns para um país rico. Em 2013, esse índice de empobrecimento chegou ao recorde de 15% da população, o maior desde a reunificação do país.

 

Segundo recente relatório coordenado por Christian Woltering, da organização não-governamental “Associação para a Igualdade”[13],

 

“A Alemanha teve reformas significativas no mercado de trabalho, começando com as reformas Hartz da Agenda 2010, na época do chanceler Gerhard Schröeder, e continuando na mesma direção com Angela Merkel. As reformas foram destinadas a enfrentar a falta de competitividade do país e tiveram sucesso, já que a produtividade tem superado o crescimento dos salários reais há mais de 20 anos”.

 

No entanto, na perspectiva microeconômica, o relatório revela que apenas os 10% mais ricos estão se beneficiando dessas mudanças, já que o crescimento econômico gerado não alcança a faixa equivalente aos 30% /40% mais pobres. Resultado que, aliás, possivelmente contribuiu para a derrota eleitoral do chanceler Gerhard Schröeder, com a mais baixa votação de seu Partido (PSDA) desde o pós-guerra (apenas 23%).

 

No Brasil, a propósito, a Lei n. 13.467/2017 igualmente desagradou a população (ou “Sua Excelência, o Povo”, como diria S.Ex.ª a Presidente do STF). Conforme recente pesquisa do Instituto Datafolha[14], os brasileiros rejeitam a reforma trabalhista em percentual superior a 64%. Em pesquisa direta no site do Senado, mais de 94% dos brasileiros registraram posição contrária ao texto então discutido. Mas as urnas a seu tempo dirão. Não façamos vaticínios.

 

Recolhida toda a informação acima, caríssimo leitor, cabe enfim resumir a ópera e amarrar as pontas soltas. Vamos a isto.

 

Na trajetória inexorável do tempo, é preciso cuidar para que os reflexos não se façam passar por corpos reais. As experiências do passado, redivivas em “modernidades”, podem abrir um labirinto de espelhos de difícil superação a médio e longo prazos. Mas a nós, brasileiros, o passado insiste em seduzir. Muitos de nós são eternos saudosos de um tempo de leite e mel que rigorosamente jamais vivemos. E como dizemos “bons tempos eram aqueles!”…

 

No caso específico da Lei n. 13.467/2017, já estamos no jogo. Apesar de todas as advertências, fomos instados a ele. Resta jogá-lo. E, ao buscar as saídas, evitar o choque com as imagens perdidas de um passado liberal que, a bem dos mínimos civilizatórios, foi há muito superado pela proteção estatal de cariz humanitário (e assim o diremos ─ humanitário ─ para evitar qualquer verniz “classista” que se queira ver nessa leitura).

 

“Negociado sobre legislado” não se admite a qualquer preço (ou tanto menos sob a máxima intervenção da “intervenção mínima”, ut art. 8º, §3º, da “nova” CLT).

 

Barateamento de mão-de-obra não é panaceia para aumento de produtividade ou de competitividade.

 

Desproteger ─ e desproteger simplesmente ─ não emancipa.

 

Desumanizar não humaniza.

 

Afastemos, pois, os espelhos, e vejamos a realidade (ou, ao menos, tentem vê-la como nós a vemos).

 

A Reforma Trabalhista foi aprovada, é fato. Mas não o foi “por causa” da Justiça do Trabalho No atual alinhamento dos astros, viria de qualquer modo, ainda que a Magistratura do Trabalho rezasse pela mais ortodoxa das cartilhas. E nem será “por causa” da Justiça do Trabalho que a Reforma Trabalhista falhará ou vingará. Os juízes do Trabalho cumprirão a sua missão constitucional de interpretar e aplicar a lei posta, de acordo com seu livre convencimento motivado (que não desapareceu!), segundo as balizas que regem a função constitucional e baseiam o juramento de investidura: a Constituição e as leis. E se a Reforma Trabalhista vingar ou falhar, será por seus próprios (de)méritos. Os dados comparativos hauridos de realidades estrangeiras que viveram inflexões similares não são animadores (supra). Mas a Lei n. 13.467/2017 é o que é. E a sua natureza ditará o seu destino.

 

As leis, quase tal qual seres vivos, nascem, “crescem” (quando “pegam”), reproduzem-se (quando inspiram), envelhecem e de regra morrem (quando são revogadas, expressa ou tacitamente). Nesse intercurso, são interpretadas/aplicadas por juízes. É a ordem natural das coisas, mesmo no universo do dever-ser (Sollen). Juízes do Trabalho não merecerão ─ e nem admitirão ─ qualquer culpa por cumprirem seu mister constitucional. Lamentarão, ademais, a atitude dos que, sendo juízes, transigirem com tal pecha. Tampouco os cidadãos de bem, creiamos, deixar-se-ão fascinar por esse diabólico canto de sereias.

 

Os juízes farão seu papel. Também o farão procuradores do Trabalho, auditores-fiscais do Trabalho e advogados trabalhistas. E as normas hauridas da Lei n. 13.467/2017 serão, afinal, o produto de tudo isto.  Como tem de ser, nos genuínos Estados Democráticos de Direito. Entre nós, “brazucas”, isto foi aprendido com os melhores; e, dentre todos, com o grande Eros Grau[15]:

 

“Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade […]. A interpretação do direito tem caráter constitutivo — não meramente declaratório, pois — e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. […] Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do texto. Interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular. […] Se for assim ─ e assim de fato é ─ todo texto será obscuro até a sua interpretação, isto é, até a sua transformação em norma. Por isso mesmo afirmei, em outro contexto, que se impõe observarmos que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada“.

 

É isto. Nada de novo sobre o Sol. Ao menos para quem compreende minimamente as coisas do Direito.

 

E para quem mais as compreende no campo laboral, findemos com Bauman[16]: em tempos de hipermodernidade, certas “modernizações” trazem oculta a indizível figura de um “Estado de bem-estar para os ricos” ─ a antípoda histórica do Direito do Trabalho ─, que curiosamente “jamais teve a sua racionalidade questionada”. É o que dizia o emérito polonês, falecido em janeiro deste ano…

 

Façamos nós, ao menos, o básico esforço de questioná-la. Você, leitor, é réu do seu juízo.

Gostou da coluna? Nesta aqui, mais uma honrosa “parceria”, desta vez com o dileto amigo Germano Siqueira, meu predecessor na Presidência da ANAMATRA.  

Fale comigo por intermédio do e-mail abaixo.

Sugira novos temas.      

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[1] V. https://en.wikipedia.org/wiki/Company_union (g.n.). V. também ALBERTA FEDERATION OF LABOUR. Beware of phony “unions”. In: https://web.archive.org/web/20070919135734/http://www.afl.org/campaigns-issues/Phony_Unions/default.cfm. Nesse último texto, são ainda chamados, no texto, como “dummy unions” (sindicatos-manequins) ou “rat unions” (sindicatos-ratazanas).  

[2] V. http://www.opovo.com.br/jornal/politica/2017/07/liberacao-de-emendas-a-parlamentares-aumenta-75-em-maio-e-junho.html.  

[3] ALINSKY, Saul D. Rules for Radicals: A Pragmatic Primer for Realistic Radicals. New York: Random House, 1971, passim. V. também, na versão para internet (VIntage Books): https://monoskop.org/images/4/4d/Alinsky_Saul_D_Rules_for_Radicals_A_Practical_Primer_for_Realistic_Radicals.pdf. A regra em questão, porém, foi incluída apenas na edição de 1972, juntamente com a 12ª regra.  

[4] V. CASAGRANDE, Cássio. “A Reforma Trabalhista e o ‘sonho americano’”. In: https://jota.info/artigos/a-reforma-trabalhista-e-o-sonho-americano-11062017 (acesso em 4/9/2017).  

[5] V. http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-05-08-Numero-de-processos-nos-tribunais-de-trabalho-nunca-foi-tao-baixo (acesso em 4/9/2017). Sobre isso, em Portugal, concluiu o juiz PEDRO MOURÃO, no Fórum Justiça Independente, que “[a] questão prende-se exatamente com situações cada vez mais generalizadas de contratação de trabalhadores sem verdadeiros contratos de trabalho e com uma fragmentação da coesão do mercado de trabalho, com a quase inoperância de estruturas representativas dos trabalhadores que, na imensa maioria das pequenas empresas nem sequer existe”. E nisto foi secundado por ELINA FRAGA, bastonária da Ordem dos Advogados portuguesa, para quem “[a]s custas judiciais revelam-se insuportáveis para a esmagadora maioria dos cidadãos, fustigados nos últimos anos com recuos nos vencimentos e aumentos de impostos. O apoio judiciário é hoje concedido apenas a quem está numa situação de pobreza total ou indigência. E esta realidade agravou-se com a reorganização judiciária, que envolveu o afastamento geográfico dos tribunais”. As alterações realizadas pela Lei n. 13.467/2017, registre-se, são muito próximas daquelas introduzidas, anos antes, em Portugal.   [

6] V. www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf (acesso em 5/9/2017).  

[7] Especificamente para a Justiça do Trabalho, v. http://www.tst.jus.br/estatistica-do-cndt (acesso em 5/9/2017).  

[8] V. Valor Econômico, 12.2.2017.  

[9] V. http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,a-venda-no-brasil–lucro-do-citi-salta-mais-de-600-em-2015,10000022999.  

[10] MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. pp.191-193.  

[11]  Dados do “Estudo Anual de Riqueza” publicado pelo Credit Suisse, a partir de pesquisa realizada em mais de duzentos países. V. http://publications.credit-suisse.com/tasks/render/file/index.cfm?fileid=AD6F2B43-B17B-345E-E20A1A254A3E24A5 (acesso em 10/1/2017).  

[12] V. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/16/economia/1497635788_119553.html (acesso em 5/9/2017). Lê-se, ademais, no subtítulo: “Brasil usa reforma espanhola como modelo, mas mudança na legislação criou empregos precários”. Vale lembrar, a propósito, que o El País pouco ou nada tem de “esquerda”, ao menos nos moldes geopolíticos atuais. É, ao revés, um ácido crítico de regimes políticos ditos de “esquerda”, como os de Cuba, da Venezuela, do Equador e da Bolívia.  

[13] V. http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-03/relatorio-revela-aumento-da-pobreza-na-alemanha (acesso em 5/9/2017).  

[14] V. http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml (acesso em 5/9/2017). Eis breve excerto: “Quanto aos benefícios que a reforma Trabalhista irá trazer, 64% avaliaram que ela trará mais benefícios aos empresários do que para os trabalhadores. Essa taxa é mais alta entre os que têm 25 a 34 anos (69%), entre os que tomaram conhecimento da reforma (73%), entre os mais ricos (75%) e entre os mais instruídos (77%). Já, 21% avaliaram que ela trará benefícios iguais para empresários e trabalhadores e 5% que ela trará mais benefícios aos trabalhadores do que para os empresários. Uma parcela de 10% não se posicionou. […] O Datafolha também perguntou o que é melhor para as relações de trabalho (jornada de trabalho, férias e banco de horas), que elas sejam definidas por lei ou que sejam livremente acordadas entre empresários e trabalhadores. A maioria (60%) declarou que prefere que as condições de trabalho sejam definidas por lei, 30% preferem que sejam acordadas entre as partes e 10% não opinaram”.  

[15] GRAU, Eros. Voto proferido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. In: REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 1957-___. jun.-abr. 2011. vol.216. pp.19-47 (g.n.).   [16]  BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: Conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p.36.  

 

Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz do Trabalho do TRT da 15ª Região. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2017-2019. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Escreve mensalmente, para o Jota, nesta coluna “Juízo de Valor”.  

Germano Silveira de Siqueira - Juiz do Trabalho do TRT da 7ª Região. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho no biênio 2015-2017.

Artigo publicado no JOTA: https://jota.info/colunas/juizo-de-valor/reforma-trabalhista-por-detras-do-jogo-de-espelhos-06092017  

A JUSTIÇA DO TRABALHO É GARANTIA DE EQUILÍBRIO ENTRE EMPREGADOS E EMPREGADORES

QUEM ODEIA A JUSTIÇA DO TRABALHO.

   

         “A Justiça do Trabalho, que é anacrônica e não pode existir em um país que se quer desenvolver”;

 

          “A Justiça do Trabalho não deveria nem existir”.

 

          Quase 20 anos separam as declarações acima. A primeira proferida, em 03.03.99, pelo inesquecível – não pelos melhores predicados - e então Presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães; a segunda, em 08.03.17, pelo atual Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.  O que têm em comum esses protagonistas com outros que defendem e perseguem – com ódio figadal – o fim da Justiça do Trabalho ? Algo, com certeza, os une.

 

          Talvez tenham a mesma ideologia do Ministro da Saúde Ricardo Barros - defensor da ideia de que homens trabalham mais que mulheres e, por isso, buscam menos o atendimento de saúde ou, ainda, de que a obesidade infantil é culpa das mães que trabalham fora. O ministro Ricardo, registre-se, foi idealizador de corte orçamentário, discriminatório, que quase paralisou toda a Justiça do Trabalho em 2016. Verdadeiro ataque pautado em equação simples: sem dinheiro, sem Justiça!

 

          Ora, odeiam a Justiça do Trabalho pois ela incomoda. Simples assim. Incomoda por sua efetividade, por sua isenção, tal qual incomoda a muitos a efetividade da operação Lava Jato. E os incomodados – detentores de cargos públicos elevados – vão buscar, de todas as formas, retirar esse “espinho na carne”, se assim a sociedade permitir. Continuarão os ataques à Justiça do Trabalho como atacou-se, recentemente, todo o Poder Judiciário, quando o Congresso Nacional tentou aprovar projeto de lei – tratando de abuso de autoridade – que consistia em verdadeira mordaça a todos os agentes públicos que lutam contra a corrupção.

 

          Ataques dissimulados – pela asfixia orçamentária – ou diretos, conduzidos por nova estratégia: a propaganda. Os incomodados proclamam, de forma solene, que: “a Justiça do Trabalho trava a economia”; “a Justiça do Trabalho só existe no Brasil e é grande e cara”, na expectativa de que a repetição exaustiva de mentiras torne-as verdades, tal qual como se tenta fazer com a atual proposta de reforma trabalhista. Reforma esta defendida com base em um sofisma: se reduzidos os direitos trabalhistas, aumenta-se, automaticamente, o número de empregos. E a economia, nada?

 

          O fato é que: 1 - A jurisdição trabalhista existe em todos os países democráticos e eventual extinção da Justiça do Trabalho no Brasil não “faria sumir” os conflitos trabalhistas. Por essa lógica, melhor seria também extinguir as Varas de Defesa do Consumidor. Sem Varas, sem problemas de relação de consumo. Só que não; 2 – O modelo brasileiro de Justiça Trabalhista é simples e efetivo, copiado, em seus eixos, por outros ramos do Judiciário; 3 – A função estatal judiciária não deve ser precificada, mas o fato é que Justiça do Trabalho, segundo o CNJ, arrecadou em 2014 aos cofres da União, em custas em contribuições previdenciárias, 2,8 bilhões de reais e, claro, pagou os créditos trabalhistas insatisfeitos.

 

          Assim, passarão os anos, mas enquanto os conflitos trabalhistas existirem e a sociedade não se permitir enganar pela propaganda dos incomodados – Goebbels da modernidade – a Justiça do Trabalho continuará atuando com isenção e celeridade, incomodando a quem não se agrada de um Poder Judiciário efetivo. O ódio não pode prevalecer.

 

 

Manaus, 17 de Março de 2017.

 

 

SANDRO NAHMIAS MELO

Presidente da Associação dos Magistrados

da Justiça do Trabalho da 11ª Região – AMATRA XI

 

O STF e o Estado Social

Anamatra
O STF e o Estado Social

(*) Guilherme Guimarães Feliciano

25 de maio de 2015

O Poder Judiciário, tal qual os demais poderes da República, é uma das manifestações políticas do Estado brasileiro. Ao decidir litígios individuais e coletivos, não lhe basta buscar a pacificação social. Não é seu mister simplesmente “decidir”, com a presteza possível, e assim superar o conflito (até mesmo porque, em sede de litigiosidade social, os conflitos não desaparecerão com a sua mera solução formal). Supõe-se que decida, sempre, escorado pelos princípios constitucionais que a Carta em vigor erigiu como fundamentos e objetivos fundamentais da República. Não há, pois, legitimidade constitucional para um Judiciário radicalmente “liberal”, que garanta liberdades e direitos individuais a qualquer preço e, de outro turno, ignore os traços de social democracia que o próprio constituinte originário positivou.

Nessa linha de convicção, chama a atenção uma “tendência” de desconstrução do Direito social que o Supremo Tribunal Federal vem revelando nos últimos anos, não raro desautorizando jurisprudência anterior consolidada do Tribunal Superior do Trabalho (que, por ser uma corte superior, já é per se conservadora, se comparada às instâncias inferiores). Se não, apenas para fins ilustrativos (porque há inúmeros outros casos), vejamos.

Em 2008, no RE n. 565.714/SP, o STF entendeu que, embora inconstitucional o cálculo do adicional de insalubridade sobre o salário mínimo, não era possível ao Judiciário modificar essa base de cálculo, de modo que, até haver alteração da CLT, as empresas deveriam seguir pagando o adicional com o cálculo eivado de inconstitucionalidade (objetando a oportuna analogia que o TST começava a praticar, calculando o adicional sobre o salário contratual, à maneira do adicional de periculosidade).

Em 2010, na ADC n. 16, o STF decidiu que, no âmbito da Administração pública, a responsabilidade do Estado pelos direitos trabalhistas sonegados de terceirizados só teria lugar se se demonstrasse a “culpa” do administrador, ao escolher ou ao fiscalizar a empresa de prestação de serviços (afastando, na hipótese, a salutar previsão do artigo 37, §6º, da Constituição, que dispensa a prova da culpa, e relegando o trabalhador terceirizado, para esse efeito, a uma condição de “subcidadão”).

Ano passado, no ARE n. 70912, o STF entendeu que o prazo para reclamar valores não depositados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço havia de ser de cinco anos, e não de trinta anos, como previa a Lei n. 8036/1990 (embora o próprio artigo 7º da Constituição preveja, no caput, a prevalência das normas legais mais benéficas).

Este ano, por fim, ao ensejo do RE n. 590415, o STF entendeu que, nos planos de dispensa incentivada, são válidas as cláusulas que dão quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas decorrentes do contrato de trabalho, desde que essa possibilidade tenha sido previamente avençada em negociação coletiva (prevalecendo, pois, o negociado sobre o legislado, a despeito da natural irrenunciabilidade dos direitos sociais em geral).

Fazer prevalecer, como regra, o negociado sobre o legislado é o que afinal se discutia no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, sob os auspícios do então Ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Dornelles; no auge da política neoliberal brasileira, era isto que se propunha, basicamente, para a nova redação do artigo 618 da CLT. Nada obstante, o Congresso Nacional barrou a pretensão, por entendê-la precarizadora e desconforme com os princípios que regem o Direito do Trabalho. Baldada resistência: ao que parece, a cúpula do Judiciário chancelará a primazia do negociado, no plano coletivo, por outras vias.

Realcemos, porém, o que se decidiu recentemente, em meados de abril, na ADI n. 1923, por sete votos a dois (contrariando o voto do relator originário, o ex-ministro Ayres Britto). Admitiu-se, à altura, que a execução de serviços sociais considerados essenciais para o Estado, como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação ambiental, possam ser realizados por meio de convênios com as chamadas “OS” (organizações sociais). Na prática, o STF convalidou a subcontratação de “atividades-fim” no próprio âmago do Estado, liberalizando o que até mesmo o Parlamento temeu fazer, na medida em que o PL n. 4330/2004 — que agora tramita no Senado como PLC n. 30/2015 — viu-se inicialmente restringido por uma emenda supressiva de plenário que, acolhida, tornava inadmissível a terceirização de atividades-fim na Administração direta.

Ora, o Parlamento nacional — cuja composição atual é possivelmente a mais conservadoras dos últimos anos — agiu como agiu, àquela altura, por uma razão óbvia e autoevidente: sem lançar mão de concursos públicos e de contratação direta, é praticamente impossível ao Estado garantir impessoalidade nas contratações e impedir a mercancia de mão-de-obra sob o seu nariz, seja ela “especializada” ou não.

O Judiciário, porém, assim não entendeu. Autorizou que as unidades federativas sigam terceirizando serviços ligados à saúde, à educação, à cultura, ao desporto e à ciência e tecnologia, nos termos da Lei n. 9.637/1998 (que integrava o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, de 1995, capitaneado pelo Governo FHC), lançamento mão de “organizações sociais” devidamente credenciadas, mesmo à margem de licitações públicas — desde que, ressaltou o relator, nos processos de seleção e contratação haja observância aos princípios da publicidade e da impessoalidade, entre outros. Só não se respondeu à óbvia questão nuclear: como garantir publicidade e impessoalidade com credenciamentos discricionários dos entes federativos e sem licitações regulares? Difícil vislumbrar saídas que não sejam meramente retóricas…

Max Weber identificava na burocracia do Estado moderno o mais alto grau de racionalidade no trato da coisa pública. Essa burocracia, na acepção positiva do termo, caracterizar-se-ia pela manutenção de um aparato técnico-administrativo permanente, formado por profissionais especializados e selecionados segundo critérios racionais para lidar com as diversas missões institucionais do poder público. Aparentemente, porém, o Brasil arrisca-se a seguir outros caminhos. Escolas públicas sem professores, institutos de pesquisa sem pesquisadores, hospitais públicos sem médicos próprios… eis a deformação que se anuncia. Pode haver um Estado sem servidores públicos?

De tão liberais que temos sido, nossa “modernidade” ameaça regredir para os albores do século XVIII.

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(*) O autor é professor associado II da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Livre-Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP.

E CONTINUA A NOVELA DA TERCEIRIZAÇÃO: CUIDADO!!!

A Novela da terceirização ainda não acabou. No último dia 10/05,  "O Globo" publicou artigo do Juiz do Trabalho, Paulo Guilherme Périssé, presidente da AMATRA 1,  sobre o tema.

  • "PAULO GUILHERME PÉRISSÉ Paulo Guilherme Périssé é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (1ª Região-RJ)"

"O dilema da terceirização

Ponto de equilíbrio foi alcançado com responsabilização subsidiária do tomador dos serviços, caso empresa contratada não cumprisse compromissos com os trabalhadores

Otema da chamada terceirização está posto no debate público com a aprovação pela Câmara dos Deputados do PL 4330/04. A polêmica vigorosamente estabelecida na mídia deixa transparecer a sua importância no cenário das relações de trabalho, até hoje orientadas, principalmente, pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Antes de tudo, vale recordar que, sob o ângulo dos negócios, a terceirização é uma forma de organização do trabalho cujo maior objetivo é dinamizar a produção, com a melhoria dos seus níveis de eficiência. Há muito tempo, a moderna gestão destaca que o seu propósito é o incremento da produtividade, com a compartimentalização do trabalho dentro daquilo que cada organização sabe fazer melhor.

No plano jurídico, diversos países lidam com o assunto, oscilando desde aqueles que permitem a livre organização sem maiores restrições e aqueles que procuram estabelecer um equilíbrio entre o aumento da eficiência e a preservação da qualidade do emprego.

No Brasil, a adoção dessa estratégia por setores produtivos nas esferas privada e pública repercutiu no Judiciário trabalhista, com o aumento das demandas relacionadas ao tema nos anos 1990, o que conduziu à edição da súmula pelo TST para tratar do assunto.

Sinteticamente e procurando recuperar essa trajetória, foi criada uma referência jurídica, não apenas para os juízes, mas para todos aqueles que exercem alguma atividade produtiva formal. Como critério, foi estabelecida a separação entre as atividades fim e meio, admitindo-se a terceirização nesta última por dizer respeito a todo trabalho não relacionado com a atividade econômica principal desempenhada pela organização. Assim, por exemplo, em uma metalúrgica, o trabalho de limpeza ou vigilância poderia ser prestado por uma empresa especializada nesse tipo de serviço, já que não era o foco do negócio da contratante.

A partir desse ponto, as demandas judiciais relacionadas ao tema foram deslocadas da possibilidade ou não de terceirização para a responsabilidade por reparações aos trabalhadores das companhias contratadas, quando sofressem eventuais lesões no curso do contrato. O ponto de equilíbrio foi alcançado com a responsabilização subsidiária do tomador dos serviços, caso a empresa contratada não cumprisse os seus compromissos com os trabalhadores. Isso ocorreu, recentemente, com os trabalhadores terceirizados do Comperj.

A ideia básica desse caminho é de que, ao contratar, a tomadora tem o dever de fiscalizar a execução do contrato e, não o fazendo ou exercendo-o mal, deve reparar os danos causados aos trabalhadores. Esta, por sinal, é uma obrigação inerente à própria qualidade da gestão do negócio e, vale ressaltar, que grande parte das empresas é diligente nesse ponto e os casos levados à Justiça são localizados no universo da atividade produtiva.

O grande debate atual é, portanto, para a regulamentação de forma inclusiva. No Brasil as associações de magistrados têm procurado esclarecer os seus pontos de vista e os seus compromissos com a qualidade do emprego. Quando falamos em precarização, estamos pontuando que o incremento da formalização do mercado de trabalho no país precisa estar acompanhado da valorização dos serviços, tanto em termos de remuneração e qualificação, como preservação de um ambiente de trabalho seguro.

Se a competição interna ou externa é uma variável a ser considerada na sua organização, a opção pelo rebaixamento da qualidade do emprego com a terceirização em qualquer nível não parece ser uma estratégia oportuna para uma economia do tamanho da brasileira. Nossa dimensão nos permite um olhar estratégico para o futuro que concilie a melhoria da produção com a qualidade do emprego e o incremento da remuneração e da qualificação dos trabalhadores com a maior produtividade.

Antes de tudo, o debate atual representa uma escolha crucial para o futuro das relações de trabalho no nosso cenário. O Senado terá agora a oportunidade de avançar com essa agenda para além das disputas político-partidárias, com sabedoria; afinal, o que está em jogo, acima de tudo, é um dos pilares de qualquer estratégia de desenvolvimento sustentável. “

Terceirização: a hora e a vez do legislativo. Otimismo ingênuo?

Terceirização: a hora e a vez do legislativo.

Otimismo ingênuo?

“É difícil melhorar nossa condição

 material com leis boas, mas é muito

 fácil arruiná-la com leis ruins.”

Franklin Delano Roosevelt

Por Maria Rita Manzarra

Inúmeros artigos já foram publicados desde a aprovação, na Câmara Federal, do texto base do Projeto de Lei que visa regulamentar a Terceirização (PL 4330/04). Difícil, então, não incorrer em repetição, todavia, vale o risco… Ninguém merece sentir-se sufocado por palavras não ditas.

O conflito entre capital e trabalho é antigo, sabemos bem… Que o capitalismo é selvagem, também não é novidade. Só que nas últimas semanas, no Congresso Nacional, o capital tem agido como verdadeiro rolo compressor, como há algum tempo não se via. A crise política e a desesperança no atual governo criam o cenário propício para o agigantamento do conservadorismo e pragmatismo neoliberal. Defender o trabalhador e o direito do trabalho tornou-se sinônimo de óbice ao desenvolvimento, de entrave à modernidade. Simplesmente “démodé”.

Escutamos da tribuna, de parlamentares empresários (ou empresários parlamentares), que a aprovação do PL gerará mais empregos e será benéfico para os trabalhadores. Estaria o autor do Projeto – empresário, um dos maiores produtores de biscoito da América Latina – e seus apoiadores, realmente preocupados em proteger o trabalhador?

Falácia, pura falácia…

O que ocorrerá, na realidade, será a precarização das relações de trabalho. Não teremos NOVOS empregos, mas a transformação dos existentes em empregos piores. Em questão de pouco tempo, assistiremos à dispensa em massa de empregados contratados diretamente, a fim de serem substituídos por empregados terceirizados, muito, mas muito mais baratos para o empregador. Afinal, pelo novo Projeto, será permitido que uma empresa funcione apenas com terceirizados, sem nenhum empregado contratado diretamente.

Estudos do DIEESE comprovam, como já reiterado na mídia, que os trabalhadores terceirizados percebem salário 27% menor que o recebido por trabalhadores contratados diretamente; laboram, em média, 3 horas amais de jornada por semana; passam, em média 2,6 anos a menos no emprego e sofrem mais acidentes de trabalho, pois de cada cinco trabalhadores que morrem no trabalho, quatro são terceirizados. Não, definitivamente não queremos “novos” postos de trabalho a esse custo.

Se este Projeto é tão bom para a classe operária – como insistem alguns – é de se indagar: qual o benefício concreto trazido pelo Projeto, que não esteja, hoje, garantido aos trabalhadores? A resposta é simples: NENHUM.

O instituto da terceirização, a despeito de não regulamentado por lei, é regido atualmente por uma súmula editada pelo Tribunal Superior do Trabalho. Esta súmula (331) estabelece, em síntese, limites à utilização do instituto e preceitua regra de responsabilização do tomador de serviços, no caso de inadimplemento das verbas devidas ao trabalhador.

O Projeto de Lei 4330, em trâmite na Câmara dos Deputados, não concede absolutamente nada A MAIS para o trabalhador: não garante isonomia salarial, não prevê maior garantia do pagamento dos seus créditos através da responsabilidade solidária do tomador e não garante a filiação ao sindicato de atividade preponderante da empresa contratante, admitindo-a apenas nos casos em que o contrato de terceirização se der entre empresas que pertençam à mesma categoria econômica (o que, na prática, dificilmente ocorrerá). Ao revés, permite a aplicação indiscriminada do fenômeno, em todas as atividades da empresa, no afã de atender, unicamente, a interesses econômicos próprios do empregador.

É digno de nota, ainda, que o texto base do Projeto aprovado na sessão de 08.04.2015, visava permitir, inclusive, a terceirização em atividade fim de empresas públicas e sociedades de economia mista, incorrendo em flagrante burla à regra do concurso público e aos princípios da moralidade administrativa e impessoalidade. A seleção em caráter impessoal, que assegura que os candidatos concorram em igualdade de condições, estaria com seus dias contados, pois a terceirização da atividade fim, no âmbito administrativo, significaria a redução drástica das vagas em concurso público. Tal distorção, ao que parece, restou sanada com a aprovação em Plenário, na votação de 14.04.2015, de destaque de emenda apresentado pelo PSDB, que visou justamente suprimir do texto base do PL4330 a possibilidade de terceirização da atividade fim na Administração Indireta.

E aí a pergunta aflora novamente: a quem este Projeto realmente beneficia?

Aqueles que defendem a aprovação do texto tentam, a todo custo, denegrir a postura de entidades sindicais que lutam pela sua rejeição. Luta esta, frise-se, absolutamente desigual, pois nem mesmo acesso à Câmara dos Deputados [Casa do Povo?], no dia da votação, tiveram. Por outro lado, todo o empresariado transitava livremente pelo Salão Verde da Câmara, com amplo direito de ir e vir, e com todas as facilidades de abordagem aos parlamentares…. Pois bem. Afirmam os simpatizantes do PL, dentre eles o Presidente da Câmara, que a real preocupação das entidades sindicais estaria centrada em interesses pela contribuição sindical. Tratar-se-ia, então, simploriamente, de disputa de dinheiro (de parte a parte). Por apego ao debate, admita-se que isto seja verdade. Como justificar, então, que o Judiciário Trabalhista, em peso, firme posição contrária à regulamentação da Terceirização, da forma como posta? Aqui, seguramente, não há “disputa de dinheiro” em jogo. O que querem, então, estes juízes do trabalho?

É bom que se diga que a aprovação do PL implicará, em breve, num tsunami de processos na Justiça do Trabalho. Este aumento expressivo de processos, na nossa sistemática, traduz-se em mais poder, em expansão e reafirmação da imprescindibilidade desta Justiça Especializada, pois a criação de novas unidades jurisdicionais está diretamente vinculada ao número de demandas ajuizadas. Seria então, sob este viés (minimalista), positiva para os juízes do trabalho e mais fácil, para eles, quedarem-se inertes, assistindo impassíveis ao rolo compressor do empresariado e a aprovação do PL, na espera de benefício próprio que mais adiante seria colhido. Poderiam assim agir, contudo, não o fazem.

A magistratura trabalhista através de sua entidade representativa – a ANAMATRA, batalha incansavelmente pela rejeição do PL 4330. Luta incessantemente contra a utilização indiscriminada e sem limites da terceirização, fenômeno comprovadamente nefasto ao trabalhador. Trata-se, pois, de uma concreta preocupação social, desatrelada de interesses econômicos de qualquer ordem, o que, para muitos, infelizmente, ainda é difícil de entender.

Se a Câmara dos Deputados encontra-se acometida de incontida pró atividade para regulamentar a Terceirização, em prol do trabalhador – como dizem -, ótimo! Aproveitemos o momento e aprovemos um Projeto de Lei que, diferentemente do que está em votação, vá ALÉM do que hoje está garantido pela súmula 331, do TST, ou que, pelo menos, não reduza o que ali se construiu, regredindo garantias conquistadas historicamente.

É a hora de afastar a desesperança. É a vez de resgatar a crença do povo brasileiro na construção de um país melhor. É, portanto, a hora e a vez do Poder Legislativo. E que não sejamos, uma vez mais, vítimas de nosso otimismo ingênuo.

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Maria Rita Manzarra de Moura Garcia, Juíza do Trabalho Titular da 3ª Vara do Trabalho de Mossoró, RN, Presidente da AMATRA21 e membro da Comissão Legislativa e de Prerrogativas da ANAMATRA. Artigo originalmente publicado em http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/

TERCEIRIZAÇÃO PARA TODOS. BOM PARA QUEM?

TERCEIRIZAÇÃO PARA TODOS. BOM PARA QUEM?

Guilherme Guimarães Feliciano

A Presidência da Câmara dos Deputados anuncia, para os dias 7 e 9 de abril, a votação do Projeto de Lei n. 4.330-C/2004, da relatoria do Deputado Arthur Oliveira Maia (SD/BA) — embora pendente, diga-se à partida, de parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania daquela Casa. O projeto, que será votado com o texto do seu derradeiro substitutivo, “dispõe sobre os contratos de terceirização e as relações de trabalho dele decorrentes”. Embora algumas centrais sindicais individualmente já o estejam apoiando, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical pedem a sua rejeição, assim como a pede, em nome da sociedade civil, o Fórum Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, que reúne entidades dos mais diversos segmentos, como as próprias centrais referidas, a Força Sindical, a União Geral dos Trabalhadores, a Nova Central Sindical dos Trabalhadores, a Federação Única dos Petroleiros, o Movimento pelos Direitos Humanos (MHuD), a Associação Latino Americana de Advogados Laborais (ALAL), a Associação Latino Americana de Juízes do Trabalho (ALJT), a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT) e representantes de centros acadêmicos como o CESIT/IE/UNICAMP e o Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" da Universidade de Brasília, entre outros.

Ao ter contato com tão ampla gama de detratores, o leitor poderia se indagar sobre as razões de uma resistência assim empedernida, já que — dirão os convertidos e os mais incautos — o PL n. 4.330 só trará benefícios à população brasileira, garantindo mais empregos, afastando a instabilidade decorrente das imprevisíveis decisões judiciais e assegurando, nas palavras do relator, “avanços importantes para a proteção dos milhões de trabalhadores terceirizados do Brasil, que hoje não dispõem de nenhuma legislação protetora dos seus direitos”.

Saiba o leitor, se ainda não lhe foi dito, que os trabalhadores terceirizados têm, sim, hodiernamente, uma estrutura de proteção dos seus direitos sociais mínimos, não por lei, mas pela jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que a quase unanimidade dos juízes aplica ao caso. Essa jurisprudência está sintetizada na Súmula n. 331 do TST, pela qual a terceirização é lícita em apenas quatro hipóteses: (a) na contratação de trabalhadores por empresa de trabalho temporário (Lei nº 6.019/74), mesmo em atividades-fim da empresa; (b) na contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983); (c) na contratação de serviços de conservação e limpeza; e (d) na contratação de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Se o Parlamento pretendia “positivar” essa proteção, bastaria editar lei que reproduzisse e especificasse esses critérios. Em todo caso, ressalvar-se-ia o óbvio: se desde Adam Smith a riqueza se produz com força de trabalho, capital e natureza (matéria-prima), salutar que a empresa, nas suas atividades-fim (isto é, naquilo que perfaz a sua atividade econômica principal e a situa no mercado), mantenha força de trabalho própria, sob sua subordinação e responsabilidade. Para as atividades-fim, deve ter empregados próprios. Do contrário, consagraríamos a mercancia de mão-de-obra (o marchandage criminalizado pelos franceses): para produzir bens ou serviços, bastaria “comprar” força de trabalho oferecida por interpostas empresas, sob regime de comércio. Empresas que, ao cabo e ao fim, lucram “emprestando” pessoas (ou sua força de trabalho).

Pois é exatamente o que fará o PL n. 4.330-C/2004. Em seu artigo 3º, ele substitui o critério atualmente em vigor, baseado na distinção entre atividades-fim e atividades-meio, por outro, importado da Europa (e sob severas críticas por lá), que se baseia na ideia de “especialização” da atividade. Noutras palavras, o empresário poderá terceirizar qualquer atividade, inclusive aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o faça por intermédio de uma “empresa especializada, que presta serviços determinados e específicos, relacionados a parcela de qualquer atividade da contratante”.

Os defensores do projeto dizem que isto calará as cortes trabalhistas, porque já não haverá a margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio (que, de fato, exige a interpretação do juiz, nos casos que não são óbvios). Falso. O litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa “especializada”, que detenha know-how diferenciado para aquela atividade (i.e., se oferece mesmo “serviços técnicos especializados”), ou se é apenas um simulacro de empresa, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão-de-obra comum à(s) tomadora(s). Assim, p.ex., a varrição de dependências configura um “serviço técnico especializado”? E o atendimento de balcão? Tudo isto, ademais, com uma agravante: sobre esse novo “paradigma” (o das “atividades técnicas especializadas”), o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará.

Dizem também, como o relator, que haverá avanços na proteção dos trabalhadores. Ledo engano. Esse modelo de terceirização ampla e irrestrita, em qualquer modalidade de atividade, fere de morte garantias constitucionais como a isonomia, porque admite que, em uma mesma linha de produção, haja trabalhadores desempenhando idênticas funções, mas percebendo diferentes salários (afinal, poderão ter diferentes empregadores — aliás, em uma mesma linha de produção poderemos encontrar três, quatro ou mais empregadores, já que, pelo parágrafo 2º do artigo 3º do projeto, a própria empresa contratada para prestar serviços naquela linha poderá subcontratar o objeto do seu contrato, e assim sucessivamente, sem qualquer limite, desde que se valham de “serviços técnicos especializados”...). Permite a burla da garantia constitucional da irredutibilidade de salários, na medida em que um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para as mesmas funções, por intermédio da prestadora, mas com salário menor. E, não bastasse, representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como, p.ex., a Convenção 111, que trata da “discriminação em matéria de emprego e profissão” — com a terceirização de atividades-fim, trabalhadores ativados nas mesmas funções receberão, de regra, salários significativamente discrepantes — e as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. Isso porque a contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade, a sua capacidade de mobilização e a sua própria consciência de classe. Afinal, trabalhadores nas metalúrgicas já não serão metalúrgicos, assim como trabalhadores em bancos já não serão bancários; tornar-se-ão, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão-de-obra...

Por fim, se você, caro leitor, não se sente pessoalmente atingido por nada do que foi dito até aqui, poderia até me indagar: o que me interessa esta discussão? Serão os direitos alheios.

Você também estará enganado. A vingar a ideia subjacente ao PL n. 4.330, daqui a alguns anos, ao necessitar dos serviços de um hospital, você já não saberá se o médico que o atende ou opera foi selecionado e contratado pela instituição nosocomial da sua escolha, ou se é um terceirizado, admitido porque, na terceirização, o “preço” dos serviços cai surpreendentemente (e o leitor mais perspicaz imaginará o porquê...). Ao adentrar em um avião, já não terá qualquer garantia de que o piloto ou copiloto foi seleci onado, contratado e treinado pela companhia aérea da sua preferência, ou se é alguém fornecido, a baixo custo, por uma empresa prestadora de “serviços técnicos especializados” de pilotagem de aeronaves. Que tal?

Pense-se com espírito de solidariedade, pense-se com o próprio umbigo, o modelo proposto pelo PL n. 4.330 é desastroso. Ponto final. __________________________________________________________ GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP, é Diretor de Prerrogativas e Assuntos Jurídicos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Artigo originalmente publicado em http://mobile.valor.com.br/legislacao/4007332/terceirizacao-para-todos-bom-para-quem.

Edital Escola Judicial Nº04/2014

Seleção de artigos jurídicos para publicação na revista do Tritunal Regional do Trabalho da Décima Região. EJUD - Edital_n_004_2014_Escola Judicial 1

Conflitos, Polissemias e Decisão Judicial

A tgreveendência do direito brasileiro à valorização da retórica torna menos relevantes, quando não invisíveis, os fatos que compõem as disputas e os conflitos, os quais acabam ficando à livre disposição dos juízes e, em especial, dos órgãos colegiados do Poder Judiciário, com significativos riscos de arbitrariedades. No caso da greve dos trabalhadores da ECT, de 2011, os fatos subjacentes à paralisação não figuraram como protagonistas das decisões, nem foram sequer considerados como referência central dos pronunciamentos judiciais, que, ao revés, dependeram, na verdade, da simples retórica e da inclinação dos julgadores acerca do direito de greve (em abstrato). Este artigo pretende, então, mediante o recurso à pesquisa etnográfica, tornar visíveis determinados processos que se ocultam atrás de formalismos, passando pela descrição do conflito concreto encerrado na greve dos Correios, e buscando, ao final, lançar algumas possibilidades acerca do direito de greve e da apreensão do conflito pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Confira no link abaixo o inteiro teor do artigo da Juíza Noemia Porto: Conflitos polissemias e decisão judicial - Noemia Porto

Mulheres no mercado de trabalho: CLT garante proteção específica

mulherManifestações por melhores condições de vida e trabalho estão na origem do Dia Internacional da Mulher. O tradicional costume de distribuir rosas vermelhas é uma das formas de evocar o espírito das operárias grevistas que, no início do século 20, superaram o preconceito social e começaram a lutar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Em 1977, a data foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para lembrar as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres.

Essas vitórias hoje se traduzem em números. Atualmente, 1,2 bilhão de vagas de emprego no mundo são ocupadas por mulheres, de acordo com o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Apenas no Brasil, mais de 10 milhões de mulheres desenvolvem algum tipo de atividade remunerada, segundo dados do IBGE. No Distrito Federal, segundo o Dieese, elas já são cerca de 590 mil, quase a metade de toda a força de trabalho. A participação feminina no mercado cresceu 11% nos últimos 10 anos.

E a legislação brasileira também acompanhou esse avanço. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), apesar de ser de 1943, destina um capítulo com 27 artigos em vigor à proteção do trabalho da mulher. A presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, desembargadora Elaine Vasconcelos, observa que os direitos assegurados na lei ordinária (CLT e outros textos correlatos) não são regras estanques e suficientes para garantir as necessidades da mulher no contexto das relações de trabalho. Segundo a presidente, a garantia maior está nos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, na medida em que o artigo 5°, inciso I, da Constituição Federal, estabelece que 'homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição’. “As questões de gênero, porém, vão muito além das questões trabalhistas. É uma concepção cultural”, pondera. Gravidez e maternidade.

Alguns direitos já são bem conhecidos pela maioria da população, como o da licença-maternidade. Hoje, esse benefício é de quatro meses (120 dias) para empregadas do setor privado, tanto para mães biológicas quanto para adotivas. O período de seis meses (180 dias), por enquanto, só é válido para as servidoras de órgãos públicos. Os empregadores que têm adotado o prazo de seis meses são motivados pelo incentivo do Programa Empresa Cidadã, que permite a dedução dos salários desses dois meses adicionais no imposto de renda.

O período da gestação garante estabilidade no emprego, além de pagamento de salário integral e demais vantagens financeiras adquiridas. A gestante também pode optar pela mudança de função, quando as condições de saúde assim exigirem. É possível ainda solicitar dispensa do horário de trabalho pelo tempo necessário para realização de, no mínimo, seis consultas médicas e exames complementares no decorrer da gravidez. Em caso de aborto espontâneo, o empregador deverá liberar a empregada por duas semanas de repouso remunerado. Além disso, após o retorno do período de licença-maternidade, a mulher terá o direito a dois descansos de meia hora cada um durante a jornada de trabalho, para que possa amamentar o próprio filho até que ele complete seis meses de idade.

A presidente do TRT10 adverte que, em relação aos direitos derivados da maternidade, a melhor proposta não é aumentar os benefícios. “A melhor solução seria a divisão da licença maternidade e paternidade igualmente, de forma que a mãe pudesse ficar com seu filho nos primeiros meses e o pai nos meses subsequentes, ressalvado sempre o período da amamentação. Assim, haveria uma verdadeira divisão de tarefas, incentivando a mudança cultural e minorando a discriminação da mulher no ambiente de trabalho pelo fator da proteção da trabalhadora. A licença não é em prol da mãe, e sim da criança”. A desembargadora cita como exemplo a legislação da Suécia, na qual a licença paternidade permite que o pai fique em casa por um período de até 13 meses para cuidar do filho.

Descanso antes da jornada extra

Outra previsão legal bastante polêmica diz respeito ao artigo 384 da CLT, que prevê a obrigatoriedade de um descanso de 15 minutos, no mínimo, antes do início da jornada extra da trabalhadora. “Atualmente, embora homens e mulheres sejam iguais em direitos e obrigações, o dispositivo da CLT se aplica porque existem diferenças fisiológicas, merecendo, portanto, a mulher um tratamento diferenciado quando o trabalho lhe exige um desgaste físico maior. Esse é o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que vem sendo seguido pela Justiça do Trabalho da 10ª Região. Desigualdade e preconceito

Ao longo dos últimos anos, a mulher brasileira passou a ter menos filhos e aumentou sua escolaridade. Mas apesar de ser maioria da população e ter mais tempo de estudo, elas ainda ganham menos que os homens, de acordo com o IBGE. Nas grandes empresas a desigualdade é reveladora. Menos de 14% dos cargos de diretoria das 500 maiores empresas do Brasil são ocupadas pelo sexo feminino. As mulheres também demoram mais para serem promovidas.

Com relação aos salários, elas obtêm renda anual média de R$ 1.097,93, enquanto os homens atingem R$ 1.518,31, segundo dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE. A diferença ocorre mesmo quando a mulher tem 11 ou mais anos de estudo. A Pesquisa de Emprego e Desemprego do Dieese sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho do Distrito Federal aponta ainda que a proporção do rendimento recebido por mulheres em relação ao dos homens diminuiu de 78,1%, em 2011, para 77,4%, em 2012.

É para corrigir algumas dessas distorções que a CLT proíbe que seja considerado o sexo como critério determinante para fins de cálculo da remuneração, possibilidade de formação profissional e oportunidades de ascensão na carreira. Também não é permitido que o empregador recuse emprego ou promoção a um empregado, muito menos o demita em razão de ser homem ou mulher. Além disso, é proibido publicar anúncio de emprego com preferência por determinado sexo, bem como exigir atestado ou exame para comprovar esterilidade ou gravidez, durante admissão ou permanência no emprego.

o Direito, entretanto, os entendimentos são muitas vezes diversos. Na visão da desembargadora Elaine Vasconcelos, o juiz, quando se depara com uma ação de assédio moral, deve considerar que o assediador não comete a conduta merecedora de repreensão em público, especialmente dentro do ambiente de trabalho. Esta é sempre praticada de forma a não deixar testemunhas. Isto torna a prova do empregado ou empregada difícil de ser produzida. “Assim, é importante que o julgador considere os indícios de prova no contexto do caso concreto”, sublinha.

Propostas de mudança

Ainda para a desembargadora Elaine Vasconcelos, os magistrados, ao julgarem as reclamações trabalhistas, não podem apenas se pautar pela CLT. “Essa legislação foi concebida para a mulher de 1943. Havia, portanto, um contexto completamente diferente do que se tem hoje”, pondera. “Temos muito ainda que evoluir, mas não através essencialmente da busca de mudança na lei ordinária. Já temos nossa lei maior que trata disso”, finaliza.” notícia publicada no site do TRT 10ª Região

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