TERCEIRIZAÇÃO PARA TODOS. BOM PARA QUEM?
Guilherme Guimarães Feliciano
A Presidência da Câmara dos Deputados anuncia, para os dias 7 e 9 de abril, a votação do Projeto de Lei n. 4.330-C/2004, da relatoria do Deputado Arthur Oliveira Maia (SD/BA) — embora pendente, diga-se à partida, de parecer favorável na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania daquela Casa. O projeto, que será votado com o texto do seu derradeiro substitutivo, “dispõe sobre os contratos de terceirização e as relações de trabalho dele decorrentes”. Embora algumas centrais sindicais individualmente já o estejam apoiando, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical pedem a sua rejeição, assim como a pede, em nome da sociedade civil, o Fórum Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, que reúne entidades dos mais diversos segmentos, como as próprias centrais referidas, a Força Sindical, a União Geral dos Trabalhadores, a Nova Central Sindical dos Trabalhadores, a Federação Única dos Petroleiros, o Movimento pelos Direitos Humanos (MHuD), a Associação Latino Americana de Advogados Laborais (ALAL), a Associação Latino Americana de Juízes do Trabalho (ALJT), a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT) e representantes de centros acadêmicos como o CESIT/IE/UNICAMP e o Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" da Universidade de Brasília, entre outros.
Ao ter contato com tão ampla gama de detratores, o leitor poderia se indagar sobre as razões de uma resistência assim empedernida, já que — dirão os convertidos e os mais incautos — o PL n. 4.330 só trará benefícios à população brasileira, garantindo mais empregos, afastando a instabilidade decorrente das imprevisíveis decisões judiciais e assegurando, nas palavras do relator, “avanços importantes para a proteção dos milhões de trabalhadores terceirizados do Brasil, que hoje não dispõem de nenhuma legislação protetora dos seus direitos”.
Saiba o leitor, se ainda não lhe foi dito, que os trabalhadores terceirizados têm, sim, hodiernamente, uma estrutura de proteção dos seus direitos sociais mínimos, não por lei, mas pela jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que a quase unanimidade dos juízes aplica ao caso. Essa jurisprudência está sintetizada na Súmula n. 331 do TST, pela qual a terceirização é lícita em apenas quatro hipóteses: (a) na contratação de trabalhadores por empresa de trabalho temporário (Lei nº 6.019/74), mesmo em atividades-fim da empresa; (b) na contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983); (c) na contratação de serviços de conservação e limpeza; e (d) na contratação de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Se o Parlamento pretendia “positivar” essa proteção, bastaria editar lei que reproduzisse e especificasse esses critérios. Em todo caso, ressalvar-se-ia o óbvio: se desde Adam Smith a riqueza se produz com força de trabalho, capital e natureza (matéria-prima), salutar que a empresa, nas suas atividades-fim (isto é, naquilo que perfaz a sua atividade econômica principal e a situa no mercado), mantenha força de trabalho própria, sob sua subordinação e responsabilidade. Para as atividades-fim, deve ter empregados próprios. Do contrário, consagraríamos a mercancia de mão-de-obra (o marchandage criminalizado pelos franceses): para produzir bens ou serviços, bastaria “comprar” força de trabalho oferecida por interpostas empresas, sob regime de comércio. Empresas que, ao cabo e ao fim, lucram “emprestando” pessoas (ou sua força de trabalho).
Pois é exatamente o que fará o PL n. 4.330-C/2004. Em seu artigo 3º, ele substitui o critério atualmente em vigor, baseado na distinção entre atividades-fim e atividades-meio, por outro, importado da Europa (e sob severas críticas por lá), que se baseia na ideia de “especialização” da atividade. Noutras palavras, o empresário poderá terceirizar qualquer atividade, inclusive aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o faça por intermédio de uma “empresa especializada, que presta serviços determinados e específicos, relacionados a parcela de qualquer atividade da contratante”.
Os defensores do projeto dizem que isto calará as cortes trabalhistas, porque já não haverá a margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio (que, de fato, exige a interpretação do juiz, nos casos que não são óbvios). Falso. O litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa “especializada”, que detenha know-how diferenciado para aquela atividade (i.e., se oferece mesmo “serviços técnicos especializados”), ou se é apenas um simulacro de empresa, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão-de-obra comum à(s) tomadora(s). Assim, p.ex., a varrição de dependências configura um “serviço técnico especializado”? E o atendimento de balcão? Tudo isto, ademais, com uma agravante: sobre esse novo “paradigma” (o das “atividades técnicas especializadas”), o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará.
Dizem também, como o relator, que haverá avanços na proteção dos trabalhadores. Ledo engano. Esse modelo de terceirização ampla e irrestrita, em qualquer modalidade de atividade, fere de morte garantias constitucionais como a isonomia, porque admite que, em uma mesma linha de produção, haja trabalhadores desempenhando idênticas funções, mas percebendo diferentes salários (afinal, poderão ter diferentes empregadores — aliás, em uma mesma linha de produção poderemos encontrar três, quatro ou mais empregadores, já que, pelo parágrafo 2º do artigo 3º do projeto, a própria empresa contratada para prestar serviços naquela linha poderá subcontratar o objeto do seu contrato, e assim sucessivamente, sem qualquer limite, desde que se valham de “serviços técnicos especializados”...). Permite a burla da garantia constitucional da irredutibilidade de salários, na medida em que um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para as mesmas funções, por intermédio da prestadora, mas com salário menor. E, não bastasse, representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como, p.ex., a Convenção 111, que trata da “discriminação em matéria de emprego e profissão” — com a terceirização de atividades-fim, trabalhadores ativados nas mesmas funções receberão, de regra, salários significativamente discrepantes — e as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. Isso porque a contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade, a sua capacidade de mobilização e a sua própria consciência de classe. Afinal, trabalhadores nas metalúrgicas já não serão metalúrgicos, assim como trabalhadores em bancos já não serão bancários; tornar-se-ão, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão-de-obra...
Por fim, se você, caro leitor, não se sente pessoalmente atingido por nada do que foi dito até aqui, poderia até me indagar: o que me interessa esta discussão? Serão os direitos alheios.
Você também estará enganado. A vingar a ideia subjacente ao PL n. 4.330, daqui a alguns anos, ao necessitar dos serviços de um hospital, você já não saberá se o médico que o atende ou opera foi selecionado e contratado pela instituição nosocomial da sua escolha, ou se é um terceirizado, admitido porque, na terceirização, o “preço” dos serviços cai surpreendentemente (e o leitor mais perspicaz imaginará o porquê...). Ao adentrar em um avião, já não terá qualquer garantia de que o piloto ou copiloto foi seleci onado, contratado e treinado pela companhia aérea da sua preferência, ou se é alguém fornecido, a baixo custo, por uma empresa prestadora de “serviços técnicos especializados” de pilotagem de aeronaves. Que tal?
Pense-se com espírito de solidariedade, pense-se com o próprio umbigo, o modelo proposto pelo PL n. 4.330 é desastroso. Ponto final. ______________________________