25 de maio de 2015
O Poder Judiciário, tal qual os demais poderes da República, é uma das manifestações políticas do Estado brasileiro. Ao decidir litígios individuais e coletivos, não lhe basta buscar a pacificação social. Não é seu mister simplesmente “decidir”, com a presteza possível, e assim superar o conflito (até mesmo porque, em sede de litigiosidade social, os conflitos não desaparecerão com a sua mera solução formal). Supõe-se que decida, sempre, escorado pelos princípios constitucionais que a Carta em vigor erigiu como fundamentos e objetivos fundamentais da República. Não há, pois, legitimidade constitucional para um Judiciário radicalmente “liberal”, que garanta liberdades e direitos individuais a qualquer preço e, de outro turno, ignore os traços de social democracia que o próprio constituinte originário positivou.
Nessa linha de convicção, chama a atenção uma “tendência” de desconstrução do Direito social que o Supremo Tribunal Federal vem revelando nos últimos anos, não raro desautorizando jurisprudência anterior consolidada do Tribunal Superior do Trabalho (que, por ser uma corte superior, já é per se conservadora, se comparada às instâncias inferiores). Se não, apenas para fins ilustrativos (porque há inúmeros outros casos), vejamos.
Em 2008, no RE n. 565.714/SP, o STF entendeu que, embora inconstitucional o cálculo do adicional de insalubridade sobre o salário mínimo, não era possível ao Judiciário modificar essa base de cálculo, de modo que, até haver alteração da CLT, as empresas deveriam seguir pagando o adicional com o cálculo eivado de inconstitucionalidade (objetando a oportuna analogia que o TST começava a praticar, calculando o adicional sobre o salário contratual, à maneira do adicional de periculosidade).
Em 2010, na ADC n. 16, o STF decidiu que, no âmbito da Administração pública, a responsabilidade do Estado pelos direitos trabalhistas sonegados de terceirizados só teria lugar se se demonstrasse a “culpa” do administrador, ao escolher ou ao fiscalizar a empresa de prestação de serviços (afastando, na hipótese, a salutar previsão do artigo 37, §6º, da Constituição, que dispensa a prova da culpa, e relegando o trabalhador terceirizado, para esse efeito, a uma condição de “subcidadão”).
Ano passado, no ARE n. 70912, o STF entendeu que o prazo para reclamar valores não depositados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço havia de ser de cinco anos, e não de trinta anos, como previa a Lei n. 8036/1990 (embora o próprio artigo 7º da Constituição preveja, no caput, a prevalência das normas legais mais benéficas).
Este ano, por fim, ao ensejo do RE n. 590415, o STF entendeu que, nos planos de dispensa incentivada, são válidas as cláusulas que dão quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas decorrentes do contrato de trabalho, desde que essa possibilidade tenha sido previamente avençada em negociação coletiva (prevalecendo, pois, o negociado sobre o legislado, a despeito da natural irrenunciabilidade dos direitos sociais em geral).
Fazer prevalecer, como regra, o negociado sobre o legislado é o que afinal se discutia no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, sob os auspícios do então Ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Dornelles; no auge da política neoliberal brasileira, era isto que se propunha, basicamente, para a nova redação do artigo 618 da CLT. Nada obstante, o Congresso Nacional barrou a pretensão, por entendê-la precarizadora e desconforme com os princípios que regem o Direito do Trabalho. Baldada resistência: ao que parece, a cúpula do Judiciário chancelará a primazia do negociado, no plano coletivo, por outras vias.
Realcemos, porém, o que se decidiu recentemente, em meados de abril, na ADI n. 1923, por sete votos a dois (contrariando o voto do relator originário, o ex-ministro Ayres Britto). Admitiu-se, à altura, que a execução de serviços sociais considerados essenciais para o Estado, como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação ambiental, possam ser realizados por meio de convênios com as chamadas “OS” (organizações sociais). Na prática, o STF convalidou a subcontratação de “atividades-fim” no próprio âmago do Estado, liberalizando o que até mesmo o Parlamento temeu fazer, na medida em que o PL n. 4330/2004 — que agora tramita no Senado como PLC n. 30/2015 — viu-se inicialmente restringido por uma emenda supressiva de plenário que, acolhida, tornava inadmissível a terceirização de atividades-fim na Administração direta.
Ora, o Parlamento nacional — cuja composição atual é possivelmente a mais conservadoras dos últimos anos — agiu como agiu, àquela altura, por uma razão óbvia e autoevidente: sem lançar mão de concursos públicos e de contratação direta, é praticamente impossível ao Estado garantir impessoalidade nas contratações e impedir a mercancia de mão-de-obra sob o seu nariz, seja ela “especializada” ou não.
O Judiciário, porém, assim não entendeu. Autorizou que as unidades federativas sigam terceirizando serviços ligados à saúde, à educação, à cultura, ao desporto e à ciência e tecnologia, nos termos da Lei n. 9.637/1998 (que integrava o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, de 1995, capitaneado pelo Governo FHC), lançamento mão de “organizações sociais” devidamente credenciadas, mesmo à margem de licitações públicas — desde que, ressaltou o relator, nos processos de seleção e contratação haja observância aos princípios da publicidade e da impessoalidade, entre outros. Só não se respondeu à óbvia questão nuclear: como garantir publicidade e impessoalidade com credenciamentos discricionários dos entes federativos e sem licitações regulares? Difícil vislumbrar saídas que não sejam meramente retóricas…
Max Weber identificava na burocracia do Estado moderno o mais alto grau de racionalidade no trato da coisa pública. Essa burocracia, na acepção positiva do termo, caracterizar-se-ia pela manutenção de um aparato técnico-administrativo permanente, formado por profissionais especializados e selecionados segundo critérios racionais para lidar com as diversas missões institucionais do poder público. Aparentemente, porém, o Brasil arrisca-se a seguir outros caminhos. Escolas públicas sem professores, institutos de pesquisa sem pesquisadores, hospitais públicos sem médicos próprios… eis a deformação que se anuncia. Pode haver um Estado sem servidores públicos?
De tão liberais que temos sido, nossa “modernidade” ameaça regredir para os albores do século XVIII.
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(*) O autor é professor associado II da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Livre-Docente em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP.