A MM. Juíza do Trabalho Adriana Zveiter, Juíza do Trabalho Auxiliar da 6ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, revogou a liminar relativa à suspensão das aulas na rede privada de ensino.
Segundo a Magistrada, a “situação atual requer alerta e cuidado”, sendo que a grande controvérsia entre os entre os administradores públicos e seus próximos passos no combate à pandemia traz uma inegável incerteza social à população. Destacou que o Judiciário detém papel importante no abrandamento da crise política, pacificando entendimentos, mas sem que isso resvale para uma distorção institucional.
Em sua decisão a Magistrada discorre sobre as funções dos três poderes, e aponta a função do Chefe do Executivo para editar atos normativos na forma de decreto, reconhecendo a competência do Governador do DF para edição de normas reguladores que visem o controle da contaminação pelo coronavírus.
A Magistrada registrou que, nessa linha de entendimento, quase todas as medidas defendidas pelo MPT em sua petição inicial da ação civil pública foram também exigidas pelo Decreto Governamental 40939/2020, e que “muitos pais necessitam do estabelecimento (escola) aberto, pois já retornaram ao trabalho e não têm onde deixar os filhos”, sendo que estão mais seguros na escola, sjeita à fiscalização dos órgãos competentes, do que com “terceiros, sem qualquer treinamento e consciência de protocolos mínimos de segurança”.
Ao final, a Magistrada revogou a decisão liminar antes proferida e autorizou a imediata reabertura das atividades presenciais de ensino da rede particular do DF, salvo aquelas abrangidas pela decisão proferidas na ACP 254-50.2020.5.10.0007 (creches).
Leia a decisão na íntegra:
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 10ª REGIÃO
6ª Vara do Trabalho de Brasília - DF
ACPCiv 0000601-86.2020.5.10.0006
AUTOR: Ministério Público do Trabalho
RÉU: DISTRITO FEDERAL
Vistos etc.
Da Revisão da Tutela de Urgência concedida em Plantão Judiciário
Considerando os termos da petição do Distrito Federal informando que não irá elaborar novo calendário escolar, passo ao necessário exame da tutela provisória requerida pelo Ministério Público, para fins de definição da manutenção ou suspensão da tutela de urgência deferida em Plantão Judiciário.
Nos termos do artigo 296 do CPC é lícito ao juiz rever a tutela provisória a qualquer tempo.
Art. 296. A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo, ser revogada ou modificada.
Não se pode olvidar que a atuação do juiz em regime de plantão judiciário é limitada, como bem ressaltado na própria decisão liminar proferida nestes autos:
“Diante disso, eventual intervenção deste juízo, especialmente considerando tratarse de plantão judiciário para questões absolutamente urgentes, se for o caso, deve ser a menor possível, seja para não interferir na esfera do Executivo Federal, seja para não causar mais confusão e desinformação, seja para preservar a competência do juiz natural da causa após cessado o plantão judiciário” (fl. 145).
“Tal medida pode ser revertida e/ou ampliada a qualquer momento pelo juízo natural da causa, se entender de modo diverso” (fl. 155)
Assim, considerando que tutela provisória de urgência foi concedida inaudita altera pars, em regime de plantão judiciário desprovido de maiores informações, bem como, considerando os novos elementos trazidos aos autos pelo SINEP, na condição de amicus curiae, o espectro se amplia e autoriza nova análise pelo juízo natural da causa no que tange ao pedido de tutela emergencial formulado pelo Ministério Público.
Nesse diapasão, passo a decidir sobre o pleito cautelar postulado pelo Ministério Público do Trabalho na presente Ação Civil Pública, no sentido de que seja suspensa a abertura das atividades presenciais nas escolas particulares do Distrito Federal, igualando-se ao calendário escolar das Escolas Públicas.
Tutela de Urgência – Análise Preliminar
Trata-se de Ação Civil Pública, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em desfavor de Distrito Federal (DF), no período do plantão judiciário e distribuída à esta MM. 6a Vara do Trabalho de Brasília.
O relatório está historiado na decisão liminar de fls.137/156, nos termos a seguir transcritos:
“Em sua petição inicial, o autor afirma que criou um grupo de trabalho para monitorar e dialogar sobre as condições de trabalho nas unidades escolares do Distrito Federal relativamente às medidas para a redução dos impactos negativos da pandemia da Covid19 na saúde dos trabalhadores. Cita recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) relativa ao isolamento social e ao achatamento da curva numérica da epidemia para ganhar tempo e reduzir a pressão nos sistemas de saúde. Destaca que referido organismo adverte que escolas e empresas deveriam ser as últimas coisas a serem reabertas em um país. Apresenta dados estatísticos no Brasil e no DF acerca dos casos do novo coronavírus (SARS-Cov-2) e adverte que esta unidade da federação encontra-se no pico da pandemia e que na terça-feira a taxa de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) com suporte de ventilação mecânica era de 84%. Transcreve reportagem que aponta que, naquele dia, havia 43 pessoas com diagnóstico confirmado ou suspeito de SARS-Cov-2 na lista de espera por um leito de UTI.
O autor sustenta que, apesar de um “cenário de agravamento da crise sanitária no Distrito Federal”, o réu publicou o Decreto 40.939/2020 que permitiu a reabertura de diversos estabelecimentos, entre os quais, os de ensino da rede privada, a partir da próxima segunda-feira, dia 27/7/2020. Aduz que, em face da preocupação do ápice da pandemia e que as regras estabelecidas pelo réu não indicam padrões específicos e pormenorizados de higienização e uso de equipamentos de proteção, passou a fazer reuniões com os agentes envolvidos e interessados para dialogar estratégias de atuação que garantisse o direito à saúde dos trabalhadores. Menciona trechos de atas e resultado de pesquisa realizada, relata situação que levou a novo fechamento de escola, invoca manifestação de sociedade de pediatria e ressalta decisão diversa em outra unidade da federação e o medo dos profissionais da educação. Pondera sobre a existência de calendário distinto das escolas publicas, com retorno gradual e em data posterior: 31/8 para estudantes da educação de jovens e adultos (EJA) e do ensino profissionalizante, 8/9 para o ensino médio, 14/9 para os últimos anos do ensino fundamental e 21/9 para os demais anos, 28/9 para a educação infantil e 5/10 para os centros de ensino especial e educação precoce.
O autor lembra que, em reunião com a Secretaria de Educação do réu, recomendou a unificação dos cronogramas de retorno às aulas das redes privadas e pública e a elaboração de protocolo de biossegurança para toda a rede de ensino, mas que, em resposta, o réu decidiu manter a liberação das atividades presenciais nas escolas da rede privada a partir de 27/7/2020 e esclareceu que as escolas particulares têm autonomia para fixarem “o seu cronograma de retorno” e que foi elaborado um protocolo de retomada dessas atividades presenciais. Sustenta que esse protocolo contém inconsistências, que as medidas previstas são insuficientes e que não possui detalhamentos essenciais para se evitar o contágio e os impactos negativos dessa enfermidade. Acrescenta que:
“Se a liberação de retorno das aulas presenciais não estivesse prevista para o pico da pandemia no DF e em data iminente (27-07-2020, próxima segunda-feira), haveria tempo hábil para que o MPT prosseguisse com o diálogo interinstitucional e requisitasse administrativamente o aprimoramento do protocolo apresentado pela SEE-DF. A par disso, a reabertura das escolas particulares apenas poderia ocorrer após o efetivo treinamento dos trabalhadores acerca das regras contidas no protocolo, além da comprovação de adequação estrutural das unidades escolares e da ampla divulgação e orientação sobre essas regras a pais/responsáveis e alunos. Contudo, tendo sido mantida, pelo GDF, a liberação do retorno imediato das aulas para a próxima segunda-feira, a situação mostrase periclitante, competindo a este Órgão Ministerial pleitear as medidas judiciais emergenciais cabíveis” (há grifos e destaques no original).
O autor menciona matéria jornalística que trata do tratamento não uniforme pelas escolas particulares, com algumas optando pelo regresso das atividades presenciais. Assim, entende que cabe uma resposta efetiva desse Judiciário Trabalhista na “prevenção da lesão ao ordenamento jurídico-social” para que se possa garantir o direito fundamental à saúde de milhares de trabalhadores da educação privada do DF e, consequentemente, de milhares de alunos e seus familiares. Requer a concessão de liminar inaudita altera pars pa ra determinar que o réu, no prazo de 24h, i) “expeça ato normativo que suspenda a permissão” de retorno das aulas presenciais a partir de 27/7/2020, conforme previsão do Decreto 40.939/2020, “nas escolas particulares de Ensino Básico do Distrito Federal”, com o estabelecimento de cronograma de retorno das aulas presenciais na “Rede Privada de Ensino” semelhante ao da Rede Pública de Ensino, caso presente as condições necessárias para segurança no ambiente escolar; ii) expeça ato normativo que contenha novo protocolo de saúde e de segurança aplicável a estabelecimentos de ensino privados, com regras setorizadas e cogentes, que contenha 66 exigências que relaciona, obrigando o réu a fiscalizar seu efetivo cumprimento, sob pena de multa astreintes cumulativa por cada item descumprido. Adverte que a tutela postulada não impede a continuidade das escolas particulares no ensino remoto enquanto perdurar a pandemia da Covid-19. Ao final, postula a condenação do réu, de forma definitiva, nessas obrigações de fazer. Dá à causa o valor de R$ 100.000,00 e junta documentos”.
Em cognição primária foi reconhecida a competência da Justiça do Trabalho, com fundamento jurídico no artigo 114, IX da Constituição Federal c/c arts. 5º, II, “d” e III, “d” e 83, III, da Lei complementar 75/1993, aliado à Súmula 736 do STF e concedida parcialmente a tutela de urgência para “tão-somente, suspender por 10 (dez) dias, a contar de 27/7/2020, o retorno das atividades de ensino presencial na rede particular de ensino do Distrito Federal (educação básica e superior) estabelecidas pelo Decreto Distrital 40.939/2020, sem prejuízo da revisão da presente medida, a qualquer tempo, pelo Juiz natural da causa, e mantendo- se, na íntegra, os poderes do Exmo. Sr. Governador do Distrito Federal na gestão das medidas de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus na área de educação”.
Pois bem.
A matéria discutida nos presentes autos é direcionada à proteção à vida e à saúde do trabalhador, na qualidade de direito fundamental expresso na Constituição Federal.
Expõe a inicial que “a circunstância exige prevenção da lesão ao ordenamento jurídico-social, impondo-se uma resposta efetiva por parte do Poder Judiciário, para que milhares de trabalhadores da educação privada no DF e, consequentemente, milhares de alunos (crianças e adolescentes), bem como os seus respectivos familiares, tenham seu direito fundamental à saúde efetivamente garantido”.
Não se questiona que a proteção à vida e à saúde é um direito fundamental e, consequentemente, merece proteção máxima.
Os direitos fundamentais estão lastreados na necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana e, como, tal, merece proteção Estatal.
O direito à saúde está protegido pela Carta Maior no título referente aos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo, em seu artigo 6º que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
E dentro deste contexto de garantia à saúde como direito fundamental da República, a Carta Política se preocupou em assegurar aos trabalhadores um meio ambiente laboral livre de riscos:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;
A Constituição Federal possui um amplo catálogo de direitos sociais e dispõe de um enorme leque de normas referentes aos direitos dos trabalhadores. E como visto acima, um ambiente de trabalho digno e livre de riscos é direito do trabalhador.
Por outro lado, o direito à saúde está previsto no artigo 196 da Constituição Federal como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante “políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doenças e de outros agravos”.
Pelo exposto, não se pode negar que a questão em análise possui relevância suprema, já que diretamente relacionada a direitos fundamentais previstos e assegurados na Carta Maior.
Não obstante, não é demais ressaltar não caber ao Judiciários formular políticas sociais e econômicas direcionadas à saúde. Sua atuação fica limitada à averiguação, nas políticas públicas eleitas pelos órgãos competentes, da presença dos ditames constitucionais de proteção à vida, à saúde, ao meio ambiente laboral e, em um espectro mais amplo, da existência de normas que permitam o acesso universal e igualitário do cidadão a estes direitos.
E é justamente isto que se discute na presente Ação Civil Pública, em que se questiona a legalidade da medida adotada pelo Governo do Distrito Federal em liberar a abertura das escolas particulares em momento que se diz ser o “pico da pandemia”, e em que o Distrito Federal se depara com “taxa de ocupação de leitos de UTIs com suporte de ventilação mecânica de cerca
de 84%”.
O Ministério Público do Trabalho aponta a preocupação dos professores com o retorno das aulas presenciais neste momento de ápice da pandemia do Covid-19 alegando que as regras de segurança estabelecidas pelo Governo do Distrito Federal não indicam padrões específicos e
pormenorizados de higienização e de utilização de equipamentos de proteção.
Por esta razão, pugna pela concessão liminar para que sejam atendidos os pedidos elencados nos itens expostos na inicial com observância de 66 itens como protocolos de saúde e segurança.
É fato público e notório a crise sanitária que assola o mundo em decorrência do alastramento do novo Coronavírus (SARS-CoV-2), crise esta que ensejou a adoção de inúmeras medidas sanitárias visando evitar ou diminuir a propagação do vírus entre a população.
Os diversos países atingidos adotaram diferentes protocolos sanitários, com medidas restritivas e de isolamento social, em atenção à realidade de cada Nação, baseados nas recomendações da OMS e diversos estudos científicos que se iniciaram no intuito de desvendar os mistérios enlaçados pelo nefasto vírus. Porém, infelizmente, nenhum estudo conclusivo foi apresentado, inexistindo, por ora, cura para tão infausta doença.
A situação requer alerta e cuidado.
Ponto forte de polêmica entre o presidente Jair Bolsonaro e vários governadores, o isolamento social é questão de agudos e diários confrontos, gerando incerteza na população sobre a adequada forma de agir e se proteger. Controvérsia espinhosa que agrava a crise social na área de saúde com reflexos nas áreas econômica e política.
As divergências políticas acarretam um mal imensurável ao deixar a população órfã de comandos, com inúmeras decisões conflitantes, tanto do judiciário, quanto dos administradores públicos.
Estas divergências são retratadas diuturnamente na mídia e afetam a consciência da população não só quanto a gravidade da doença, mas principalmente quanto ao melhor caminho a seguir, pois a ausência de diretriz única quanto ao isolamento e demais medidas de enfrentamento à pandemia, gera inquietação e a preocupação de que a população pode não entender a gravidade da situação.
Diante de tanta controvérsia é inegável a incerteza social da população que se depara com a insegurança diária dos próximos passos dos administradores que, por sua vez, constantemente estão sendo impedidos de exercer o comando e direção das medidas necessárias ao combate à pandemia.
E no abrandamento da crise política e social que se deflagrou no país, o Judiciário detém importante papel e pode compor a situação, pacificando entendimentos e assim gerar sensação de segurança à população.
É notória a disputa política disseminada pela divergência de opiniões quanto às medidas de isolamento social. Neste contexto, é imprescindível a análise jurídica-constitucional sobre a competência para regular e definir atividades essenciais, bem como ditar regras de enfrentamento à crise e flexibilização da quarentena.
O Poder Judiciário, para além de exercer seu poder de dizer e interpretar a lei, neste momento de crise deve atuar de modo a criar menos insegurança à população, pois em tempos de turbulência, a sociedade precisa de um norte forte e pacífico para se sentir protegida e amparada.
O protagonismo do Poder Judiciário procede da própria Carta Magna que o legitimou para atuar na arena política, visando a proteção dos direitos fundamentais.
No entanto, essa legitimação não pode se concretizar como uma distorção institucional, mas, ao contrário, deve se materializar em circunstâncias especiais e definidas, para que não se incorra em um paradoxo político-judicial, em que há confronto direto entre poderes da União.
A Constituição brasileira estabelece os contornos e limites institucionais de atuação da política democrática, e o Judiciário é o poder a quem compete garantir a respeitabilidade a esses núcleos constitucionais.
A organização e a estrutura do Estado se baseiam em três pilares: forma de governo (República ou Monarquia), sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) e forma de Estado (unitário ou Federação).
O Brasil adota a forma republicana de governo, com sistema presidencialista e forma federativa de Estado.
Relembra Pedro Lenza que as primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra “Política”. Ali o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano: a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos” (Pedro Lenza, Direito Constitucional, 24ª Ed., Editora Saraiva, pág. 563).
A contribuição de Aristóteles foi, inegavelmente, a identificação do exercício de três funções estatais distintas, embora no momento histórico em que formula sua ideia este exercício se concentrava na figura única do soberano.
Tempos depois, a teoria aristotélica foi aperfeiçoada por Montesquieu em sua lendária obra “O espírito das Leis”.
“O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício de três funções estatais. De fato, partindo desse pressuposto aristotélico, o grande pensador francês inovou dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos únicas do soberano” (Pedro Lenza, obra citada, 563).
Assim, com base nessa teoria, cada Poder exerce uma função típica, inerente à sua natureza, de forma autônoma e independente, sendo vedado, portanto, a um único órgão legislar, aplicar a lei e julgar. Esta divisão propicia maior respeitabilidade, independência e autonomia a cada um dos poderes.
Nossa Constituição Federal adotou essa teoria e definiu a existência harmônica e independente entre os três poderes da União, na forma do artigo 2º. Esta tripartição dos poderes, certamente foi inspirada pelas reflexões de Montesquieu.
A divisão dos poderes visa combater o absolutismo e assim preservar a liberdade individual. Essa independência entre os poderes é vista como garantia de equilíbrio político que minimiza, ou reduz, os riscos do abuso de poder. Importante, também, por estabelecer regime de colaboração entre as várias autoridades estatais, “estabelecendo mecanismos de fiscalização e responsabilização recíproca dos poderes estatais, conforme o desenho institucional dos freios e contrapesos”.
Veja-se a respeito a jurisprudência do STF:
“EMENTA: (...)A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição. Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir em nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por pare de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.
(...)
O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação dos poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, de modo a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional (MS 23.452, Rel. Ministro Celso de Melo, j.
16.09.1999, Plenário DJ de 12.05.2000).
José Afonso da Silva caracteriza a diferença entre as três funções estatais que são exercidas por seus órgãos, destacando que a função executiva “resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis, mas não se limita à simples execução das leis. A função executiva se distingue em função de governo, com atribuições políticas, colegislativas e de decisão e função administrativa com três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público. Já a função jurisdicional, leciona o jurista, “tem por objetivo aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse”. (Curso de direito constitucional positivo, 35 ed., pág. 108).
Feitas essas considerações, ressalvo que não se pode negar ao Judiciário o poder de apreciar demandas sobre validade de atos e leis emanadas pela autoridade administrativa competente, sendo impertinentes as críticas nesse sentido. No entanto, essa análise é restrita e deve se lastrear nos limites de sua competência.
Em termos específicos ao que aqui se analisa, pode-se afirmar que ao Judiciário é vedado entrar na competência legislativa para definir regras e parâmetros para flexibilização do isolamento social, em especial, no que tange a abertura das escolas particulares.
Ao Judiciário caberá apenas a averiguação da observância dos princípios constitucionais assegurados ao cidadão trabalhador, analisando se a norma editada pelo Governador para reabertura das escolas particulares atende ao comando exarado na Constituição Suprema de proteção à saúde do trabalhador e resguardo do direito a um ambiente laboral protegido contra riscos.
Não por outro motivo, o Excelso Supremo Tribunal Federal estabeleceu, na análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 634, que há competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios para estabelecer atos legislativos e criar políticas públicas para o controle da pandemia em curso no país. Esta decisão foi proferida após tensão política entre o Chefe do Executivo Federal e governadores no tangente ao isolamento social como medida preventiva no combate ao coronavírus.
O poder regulamentar é exercido pelo Chefe do Poder Executivo e cabe a ele editar atos administrativos normativos que assumem a forma de decreto. “Essa competência está prevista no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal para o Presidente da República, sendo atribuída, por simetria, aos Chefes do Poder Executivo dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, pelas respectivas Constituições e Leis Orgânicas “(Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, Direito Administrativo; Editora Método, 28ª edição, pág. 277).
A Lei Orgânica do Distrito Federal, em seu artigo 100, confere os seguintes poderes ao Governador, dentre outros:
“VII - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem com expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
(...)
- – decretar situação de emergência e estado de calamidade pública no Distrito Federal;
- – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do PoderExecutivo.
No Distrito Federal o governador tem editado decretos que regulamentam o isolamento social, as atividades consideradas essenciais, o fechamento e a abertura do comércio e de parques, bem como, adotado as mais variadas medidas sanitárias , inclusive com exigência do uso de máscara facial em locais públicos.
Não há dúvidas acerca da competência do Governador para a edição destas normas reguladoras e para expedição de atos que visem o controle da contaminação pelo coronavírus.
As decisões sobre o momento oportuno para flexibilizar ou não a abertura do comércio e das instituições de ensino competem exclusivamente ao administrador, pois é quem melhor detém o conhecimento e acesso às informações técnicas atualizadas sobre a situação em que se enquadra o Distrito Federal em meio à pandemia, inclusive com análise sobre a taxa de ocupação de leitos.
O desafio que se impõe, portanto, é saber até que ponto o Poder Judiciário pode rever as decisões dos agentes públicos.
A discricionariedade do agente público se pauta pela faculdade que lhe é atribuída para fazer suas escolhas com alicerce em suas qualidades técnicas para apreciação do caso concreto, habilitando-se, portanto, a optar pela melhor solução. A decisão vincula-se ao conhecimento que o administrador detém sobre a situação que lhe é posta, dos elementos objetivos que lhe são apresentados (e que em diversas e constantes situações não são de acesso livre à população) e da noção clara e objetiva dos liames sobre a realidade administrativa que lhe cabe decidir.
Logo, a decisão discricionária do administrador público é tomada dentre algumas soluções que podem ser adotadas, e deve sempre observar os ditames legais e visar o interesse público.
Nesta conjuntura, a interferência do Judiciário deve limitar-se a análise da legalidade da atuação administrativa, a verificação de que nenhum direito constitucional foi ferido, bem como se estamos ou não diante de um ato arbitrário e ilegal do gestor público.
No caso, a autorização concedida pelo executivo para reabertura das escolas particulares do DF, não está eivada de ilegalidade e não afronta dispositivos e princípios constitucionais.
Inegável que o governador do Distrito Federal é quem melhor dispõe das informações necessárias para orientar e estabelecer diretrizes a serem seguidas pela sociedade, no que tange às medidas necessárias a se evitar o contágio com o vírus SARS-CoV-2.
Cabe ao administrador, seguindo determinados parâmetros técnicos e jurídicos e com base no conhecimento geral da situação do Distrito Federal, estabelecer as regras que entende satisfatórias e necessárias para atender às necessidades da população, quanto ao prosseguimento das atividades gerais e cotidianas da população sob seu comando.
Se por um lado o juiz não pode ficar neutro perante decisões administrativas, por outro não pode atrair para si o papel de escolher medidas que devem ser tomadas com base na solução que entender mais adequada ao jurisdicionado. Não lhe é lícito decidir sobre o que é ou não factível dentro dos limites e conhecimentos técnicos que somente o administrador detém.
Assim, somente a ilegalidade aparente com confronto direto às leis e a ditames constitucionais, autorizaria a ingerência do judiciário no comando do controle e enfrentamento à pandemia.
No caso, não vislumbro, de imediato, atuação irresponsável, ilegal ou inconstitucional do chefe do executivo do Distrito Federal em autorizar a abertura das escolas particulares.
O Ministério Público não levou em consideração as medidas que estão sendo adotas pelas escolas particulares para viabilizar a abertura segura dos estabelecimentos de ensino.
Importante ressalvar que ao contrário do alegado na inicial, quase todas as medidas sustentadas pelo Ministério Público do Trabalho como necessárias ao retorno seguro das atividades presenciais nas escolas particulares, estão previstas no Decreto governamental nº 40.939 de 02.07.2020, que fixa protocolos sanitários e medidas de segurança destinadas às instituições de ensino, conforme especificações descritas no anexo único, alínea F e seus subitens.
Dentre as medidas estão elencadas estão a necessidade de se garantir a readequação dos espaços físicos, respeitando-se o distanciamento mínimo de 1,5m por estudante; fornecimento aos trabalhadores de equipamentos de proteção individual; disponibilização de álcool em gel 70%; proibição de atividades esportivas coletivas; redução do quantitativo de alunos em salas de aulas, com promoção da alternância entre ensino presencial e remoto; garantia de atividades exclusivamente remotas para alunos e professores que se enquadram no grupo de risco, dentre outras.
O SINEP/DF prestou informações valiosas destacando as medidas preventivas que estão sendo adotadas, tais como: elaboração de guia para reabertura, cursos e palestras para professores e auxiliares em administração escolar, testagem de funcionários, convênio com laboratório, fornecimento de EPI’s, desinfecção total dos locais de trabalho, higienização constante, fechamento de parques e áreas comuns e demarcação dos locais com respeito ao distanciamento seguro de 1,5 metros entre as pessoas, além de revezamento entre as turmas e manutenção das aulas telepresenciais para aqueles pais que não se sentem seguros para retornar seus filhos às atividades presenciais. Outrossim, mantém o trabalho remoto daqueles que são enquadrados com grupo de risco.
Não é demais ressaltar que muitos pais necessitam do estabelecimento aberto, pois já retornaram ao trabalho e não têm onde deixar os filhos. Com certeza, a segurança das crianças é muito maior dentro de uma escola que sofrerá toda fiscalização dos órgãos competentes, do que com terceiros, sem qualquer treinamento e consciência de protocolos mínimos de segurança. Nesse contexto, é de suma importância a atuação do professor, cumprindo com seu papel na formação das crianças e adolescentes, como profissional capacitado a atuar no ensinamento dos menores sobre a gravidade da doença e da vital importância da observância, por todos, das medidas preventivas de contágio.
Sob este enfoque, ressalto notícia publicada em 29 próximo passado, no jornal Correio Braziliense, em que destaca carreata pedindo reabertura das escolas particulares de educação infantil no DF :
Uma carreata em frente ao Palácio do Buriti pede pelo retorno às aulas presenciais em escolas particulares de educação infantil no Distrito Federal. A manifestação ocorre na manhã desta quarta-feira (29/7) e reúne dezenas de carros e famílias.
Os pais pedem pelo direito de escolha quanto às atividades dos filhos de forma presencial ou a distância, argumentando, principalmente, que diversos familiares retornaram ao trabalho e não têm onde deixar os filhos.
(...)
“As crianças da educação infantil podem estar correndo um risco muito maior com ‘estranhos’ do que estando de volta à rotina escolar, em um ambiente totalmente voltado para elas. Nossas escolas estão preparadas para o cumprimento de todos os protocolos de segurança orientados pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”, opina a manifestante Daniella Azevedo Oliveira, 41 anos.https://www.correiobraziliense.com.br/app /noticia/cidades/2020/07/29/interna_cidadesdf,876437/carreata-pede-reabertura-de-escolasparticulares-de-educacao-infantil.shtml
Embora seja legítima a preocupação do Ministério Público do Trabalho com a vida e saúde dos professores, não se pode olvidar que a normalidade já está sendo retomada, com os devidos cuidados e medidas de segurança, para que a população possa, aos poucos, ir se acostumando com o que vem sendo chamado de “novo normal”. O gradual retorno às atividades externas e presenciais tem sido uma realidade em diversos estados do país, pois é inegável que a população precisa trabalhar, inclusive para poder manter a sua subsistência.
Os efeitos maléficos desta pandemia se retratam não só com os milhares de infectados e vítimas fatais, mas também, com o desemprego e fechamento de inúmeras empresas que faziam a economia girar e fomentavam o emprego.
Quanto a segurança no retorno, reitero que o Decreto Governamental impugnado pelo Ministério Público do Trabalho estabelece diversas medidas de segurança e protocolos a serem observados (Art. 5º e anexo único, alínea “F”), bem como determina a efetiva fiscalização por parte da Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal – DF LEGAL, em conjunto com a atuação das fiscalizações tributária, de defesa do consumidor, da vigilância sanitária e das forças policiais do Distrito Federal (Art. 7º). Outrossim, o administrador apenas concedeu permissão para abertura, cabendo a cada estabelecimento de ensino averiguar se tem condições de cumprir com todas medidas sanitárias exigidas, estabelecendo ou não a abertura e definindo seu próprio calendário.
Igualmente, aos pais está sendo assegurada a continuidade do ensino remoto àqueles que ainda não se sentem seguros em encaminhar seus filhos para atividades presenciais.
Não cabe ao judiciário se imiscuir no mérito das decisões administrativas, fazendo-se substituir ao administrador público para impor condições de atuação ou mesmo analisar quais as melhores medidas a serem tomadas para a população.
Por fim, convém registrar que não há como fazer comparação entre o prazo para abertura das escolas públicas e escolas particulares, em razão da diversidade entre as duas realidades.
O quantitativo de alunos atendidos por escolas públicas é, a princípio, superior ao das escolas particulares. Bem assim, há maior dificuldade para a implementação das medidas preventivas e de segurança em ambiente público, em razão da necessidade de se observar orçamento e procedimentos administrativos.
A administração tem o dever de prestar contas, ante o princípio da indisponibilidade do interesse público. Consequentemente, sujeita-se a processo licitatório para compra de material ou procedimento administrativo para dispensa de licitação. Há todo um aspecto burocrático para que as medidas de segurança possam ser implementadas, diferentemente das escolas particulares que não se sujeitam a estas exigências administrativas e conseguem, em pouco tempo, promover a adoção de todos os protocolos de saúde exigidos para sua reabertura. Logo, a desigual realidade entre escolas públicas e escolas particulares, autoriza o tratamento distinto quanto a data de reabertura das atividades presenciais.
Não vislumbro, pois, qualquer ilegalidade no ato do Governador a ensejar a medida pleiteada.
Conclusão
Por todo o exposto, REVOGO a decisão liminar concedida em plantão judiciário, no que tange a suspensão para retorno das atividades de ensino presencial na rede particular de ensino do Distrito Federal.
INDEFIRO a tutela de urgência requerida pelo Ministério Público do Trabalho para que seja suspensa a permissão prevista no Anexo Único, letra “F”, item 2, do Decreto nº 40.939 de 02 de julho de 2020, de retorno das aulas presenciais nas escolas particulares do Distrito Federal a partir de 27.07.2020.
AUTORIZO a imediata reabertura das atividades presenciais na rede de ensino particular do Distrito Federal, exceto dos estabelecimentos abrangidos pela decisão judicial proferida na Ação Civil Pública 254-50-2020.5.10.0007.
MANTENHO NA ÍNTEGRA o Decreto nº 40.939 de 02 de julho de 2020, bem como os poderes do Exmo. Sr. Governador do Distrito Federal na gestão das medidas de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus na área de educação.
MANTENHO o indeferimento da tutela de urgência quanto ao pedido de determinação para edição de novo decreto regulamentar pelo Distrito Federal, bem como de fixação de medidas adicionais para o retorno das atividades presenciais nas unidades de ensino da rede privada do Distrito Federal.
MANTENHO as demais decisões e determinações contidas na tutela de urgência deferida em caráter liminar em regime de plantão judiciário.
Em atenção aos artigos 4º e 6º da Portaria 57 de 20/03/2020 do CNJ, determino a imediata comunicação da presente decisão ao CNJ, nos autos do Pedido de Providências – PP nº 231445.2020.2.00.0000, observado o art. 4º da referida portaria, bem com a comunicação à Presidência do TRT desta decisão, para os fins estabelecidos no artigo 6º da Portaria. Observe a Secretaria.
Ante a urgência, dê-se ciência às das partes, inclusive dos terceiros interessados, da presente decisão, por email e/ou celular cadastrados nos autos.
Sem prejuízo da ciência na forma anterior, intimem-se as partes, mediante publicação para fins processuais.
Intime-se o Ministério Público e o Distrito Federal por meio do convênio firmado com o PJe.
Vencidos os prazos já concedidos nas decisões anteriores, venham os autos conclusos para encaminhamento.
Dê-se ampla publicidade desta decisão.
BRASILIA/DF, 04 de agosto de 2020.
ADRIANA ZVEITER
Juíza do Trabalho Substituta