Faz pouco, assisti vídeo em que Vossa Excelência, em ambiente bastante descontraído, buscou responder aos fundamentos manejados por juiz federal e pela ministra do Supremo Tribunal Federal para suspender sua posse no cargo de Ministra de Estado do Trabalho.
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Sou juiz do trabalho há mais de quinze anos e leciono Direito do Trabalho por quase igual tempo. O tema de seu vídeo diz respeito à magistratura e ao mundo do trabalho e, por isso, me afeta, no mínimo, duplamente. É sobre eles que, respeitosamente, gostaria de lhe oferecer algumas ponderações.
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Soube que Vossa Excelência é filiada ao Partido Trabalhista Brasileiro. Percebo que é a mesma sigla do então presidente da república que, na primeira metade do século XX, estabeleceu a maior parte da estrutura normativa do Direito do Trabalho e integrou as então juntas de conciliação e julgamento à estrutura do Poder Judiciário. Vossa Excelência é jovem – pelo menos assim vejo nas redes sociais –, mas deve saber que seu partido teve especial importância nesses assuntos. O PTB possui histórico de reconhecimento do valor social do trabalho, bem como da imprescindibilidade da Justiça do Trabalho e do Direito do Trabalho legislado em nosso país. Não consegui ver a mesma preocupação em sua fala.
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Na gravação, Vossa Excelência afirma que “todos pedem qualquer coisa na Justiça do Trabalho”. A postulação em juízo é uma das mais importantes garantias da civilização, assegura direitos fundamentais, restringe o abuso do poder econômico e, essencialmente, serve para que, em conflitos concretos, espalhados por todos os setores de nossa comunidade, a lei comum vença sobre a força de músculos ou de cédulas de dinheiro. A Justiça do Trabalho tem papel importante, porque é a justiça dos pobres, o ramo do Judiciário que atende ao recado do “vai procurar os seus direitos”. E as pessoas vão. Ali, com juízes e juízas trabalhistas, é que buscam a recomposição de prejuízos que alegam ter sofrido. Aparente diminuição que Vossa Excelência faz sobre as ações de trabalhadores na Justiça do Trabalho parece divorciada dos valores históricos de seu partido.
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Entristece-me que a afirmação de Vossa Excelência pareceu generalizante e tendente a diminuir a garantia constitucional de acesso ao Judiciário. Atrai à instituição carga severa e injustificada de preconceito e deslegitimação. Termina fatalmente, ainda, por contribuir com síndrome de ineficácia das decisões e fortalecer a perigosa cultura de descumprimento da legislação e prejuízo à maioria dos esforçados e honestos empresários de nosso país.
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Preciso esclarecer que não são pedidas exatamente “coisas abstratas”, como Vossa Excelência referiu. Primeiro, porque em nenhum ramo do Judiciário são admitidos pedidos “abstratos”. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, na Justiça do Trabalho, a maior parte das pretensões dizem respeito ao calote de parcelas rescisórias e depósitos do Fundo de Garantia. Ou seja, são verbas básicas, bem conhecidas por quem deveria ter pago e assim são postuladas. Também há muitos pedidos de reconhecimento de vínculo de emprego e indenizações por jornadas extenuantes. Direcionam-se a tomadores de trabalho que preferem a fraude, a exploração e a fuga dos tipos legais; mas só há condenação se assim for reconhecido em processo judicial.
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As decisões judiciais que impedem a posse de Vossa Excelência como Ministra de Estado do Trabalho basearam-se, essencialmente, na incompatibilidade entre o cargo pretendido e o fato de ter sofrido condenações trabalhistas de dois ex-funcionários. Acredito que as ações judiciais que Vossa Excelência respondeu tiveram origem em demandas de pessoas concretas, com pedidos concretos, receberam condenações igualmente concretas e haverão de ser concretamente cumpridas.
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Vossa Excelência declarou que não deve nada e que, em breve, irá provar. Não duvido de sua sinceridade, mas gostaria que pudéssemos manter o estado de direito e espero que sua demonstração de inocência siga o devido processo legal e seja apresentada em Juízo, nos processos em que foi condenada.
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De tudo que vi e ouvi em seu vídeo, intrigou-me especialmente a dúvida que Vossa Excelência externou com a frase “o que passa na cabeça das pessoas que entram contra a gente essas ações trabalhistas?” Permita-me uma comparação. Vossa Excelência recorreu da decisão de primeiro grau do juiz federal que suspendeu sua nomeação e imagino, que o tenha feito buscando a reconstituição concreta de seu sincero sentimento do justo. Nessa escala quase metafísica, não é muito diferente do que passa na cabeça dos que buscam outro juiz, o do trabalho, em suas ações. Acredite, querelantes e querelados na Justiça do Trabalho também buscam a realização da justiça.
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Mas há certa diferença entre as necessidades que estimulam os dois tipos de processo. Penso que Vossa Excelência tenha por finalidade em seu recurso exercer honroso cargo para o qual acredita estar muito bem preparada e ali desenvolver diversos dos projetos que imagino possua para a pasta.
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Nesses anos de exercício da magistratura trabalhista, com milhares de processos conhecidos, creio que possa responder que os “clientes” da Justiça do Trabalho têm necessidades mais graves. Salário e verbas rescisórias são essenciais para a sobrevivência de quem vive do trabalho e quando se está desempregado – a imensa maioria dos reclamantes – a urgência é bem maior. É por isso que a Justiça do Trabalho se esforça para continuar sendo o ramo mais célere do Judiciário, embora ainda haja muito o que melhorar.
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Também há muitos que vêm aos fóruns trabalhistas para recomposição de danos oriundos de acidentes e adoecimentos no serviço. Somos um dos países que mais produzem acidentados no trabalho e mesmo nesse tipo de processo, são comuns manobras para deixar de pagar indenizações a adoecidos, mutilados e incapacitados. Então, para esses deve passar uma angústia tremenda na cabeça, especialmente se há família para sustentar. Não faltam viúvas e órfãos buscando indenizações por morte e nas cabeças desses, as agonias são bem mais graves.
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Peço que Vossa Excelência reflita sobre tudo isso e que consiga reconhecer que a melhoria de qualidade de vida dos trabalhadores – um dos mais importantes desafios do Ministério do Trabalho – passam também pelo reconhecimento e fortalecimento das estruturas de recomposição dos conflitos.